SALA DE ESTUDOS

Por uma ecosofia em educação

Nosso esforço mais recente, que retorna sobre os processos passados, sobretudo no que tange o NECITRA (destaque para o Desdobramentos e o Tubo de Ensaio), se direcionam para o estudo do processos coletivos, mas justamente no que eles tem a ver com processos “internos”, individuais, mentais. Para tanto, tomamos a ideia de ecosofia, de Félix Guattari, presente no livro “As três ecologias”, que aparece em citação no fragmento da dissertação que copiamos abaixo. Trata-se de considerar no que a ecologia mental (os movimentos em torno do pensamento e do não-pensado), repercutem numa ecologia social e numa ecologia ambiental (e vice-versa); ainda, que esse exercício de produzir notas e de compartilhá-las num espaço comum, público, funciona (enquanto produção de efeitos) no âmbito de uma ecologia social.

Nossa pesquisa atual se orienta no sentido de um estudo das forças agentes num espaço — das  dinâmicas, com Nietzsche-Deleuze —, ecoando numa ecosofia, em uma proposta para espaços participativos que se articulem com esta noção, conforme nos apresenta Guattari (2012, p.55):

A subjetividade, através de chaves transversais, se instaura ao mesmo tempo no mundo do meio ambiente, dos grandes Acontecimentos sociais e institucionais e, simetricamente, no seio das paisagens e dos fantasmas que habitam as mais íntimas esferas do indivíduo. A reconquista de um grau de autonomia criativa num campo particular invoca outras reconquistas em outros campos. Assim, toda uma catálise da retomada de confiança da humanidade em si mesma está para ser forjada passo a passo e, às vezes, a partir dos meios os mais minúsculos.

Seguimos com o fragmento da dissertação.

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Primeiro paradoxo: o ser inteiro e o que é possível fazer hoje?

Se é verdade que, no sentido em que se costuma entendê-lo, o homem de ação não pode ser um homem inteiro, o homem inteiro guarda uma possibilidade de agir. […] É preciso distinguir de um lado o mundo dos motivos, onde cada coisa é sensata (racional), e o mundo do não-sentido (livre de todo sentido). Cada um de nós pertence em parte a um, em parte a outro. (BATAILLE, 2017, p.33).

O paradoxo se encontra nesta afirmação: o CorPo é um corpo em estado de prontidão e ao mesmo tempo se coloca em jogo (enquanto movimento em direção ao Fora, mas também, nos jogos de verdade, no plano dos estratos). Entende que manter-se inteiro, como nos apresenta Bataille (2017), seria impossível, ou só poderia ser alcançado por breves instantes de tempo — o que o autor afirma como o ápice, seguido do declínio inevitável. Ao manter-se inteiro, enquanto ser que não insere sua ação no tempo, não se direcionando ao outro entendido como um externo a si, se colocaria a olhar para o nada, gritar para o deserto, queimar, sozinho, até o fim.

Ademais, se o ser fosse inteiro, não haveria sentido no que propomos enquanto um compor-se com as forças. É só por sermos fragmentários que o jogo passa a ter motivo. De todo modo, a imagem do “homem íntegro” detém força, enquanto liberdade do ser que não se fragmenta ao se identificar com uma causa de antemão e, sobretudo, indefinidamente, numa marcha eterna ao horizonte inalcançável. Nossa integridade se afirma na liberdade compreendida nas possibilidades de escolher nossas relações, como seres sociais; em processos, por essa via, educacionais: de afirmar o que é possível fazer hoje, em quais agenciamentos posso me inserir, por quais causas quero combater, e ao lado de quem. Como nos diz Guattari (2012, p.55), que “os indivíduos devem se tornar ao mesmo tempo solidários e cada vez mais diferentes”.

Almejar sua integridade enquanto inteireza de quem se move como um nômade (DELEUZE E GUATTARI, 1997), para o qual os pontos não subjugam as linhas: de um agenciamento a outro se ressignificar, recompondo-se ao travar contato com forças diversas, ao ativar-se nos processos vitais aos qual escolhe não ficar alheio (há nisso uma escolha ética); mas, de todo modo, nos quais não se reduz como uma função. Como um nômade, mover-se num espaço exterior, liso (espaço do pensamento, do paradoxo, das forças não formadas, não materializadas), mas se projetando no espaço estriado da cidade, do cotidiano, das relações, onde atua-se (como um performer), na realidade produzida, compreendida numa rede de ficções reais.

 

Segundo paradoxo: desviar da razão pela razão (e retornar a ela)

Do jogo humano ao jogo ideal. Há um primeiro jogo possível, o humano, que divide o acaso, que busca uma meta; jogo de probabilidades, que identifica os meios e resultados, opera pela recognição. Outro jogo, o ideal, que reafirma o acaso. Estamos numa variação entre esses jogos, ao produzir, então, um desviar pela razão (em certa medida calculado), para pôr-se em jogo, via descentramento e consequente desequilíbrio autoimposto (e retornamos assim ao Método Labiríntico).

Apolo é o deus da forma, da claridade, do contorno nítido, do sonho iluminado e, sobretudo, da individualidade e da razão. […] Dioniso, por sua vez, é o selvagem deus da embriaguez, do sentimento, do desmedido e da vertigem coletiva. Todavia, ambos aspectos – o dionisíaco e o apolíneo – constituem respostas frente as potências elementares da vida. […] Dioniso e Apolo significam a oposição entre sentimento e razão, vontade e representação, coletividade e individualidade. (SAFRANSKI, 1998, p.94. TRADUÇÃO NOSSA).

Sobre a imagem de Apolo, conforme nos apresenta Nietzsche (2005), representamos os estratos, a linguagem, o sujeito, o gesto calcado no tempo, a ação objetivada, a imagem sempre a ser formada, reapresentação do ideal, do belo. E ainda que Dionísio nos reapresente essa força sempre pulsando ante o subsolo sobre o qual se apresenta as aparências apolíneas (uma vez que não se trata de oposição, mas de complementariedade), sua força tende a ser demasiadamente contida pelos estratos (as instituições a todo tempo reafirmam o sujeito, buscam interpretações, identificações, significações e condução das operações dos/nos corpos). Como afirma Deleuze e Guattari (1996, p.19):

Nós não paramos de ser estratificados. Mas o que é este nós, que não sou eu, posto que o sujeito não menos do que o organismo pertence a um estrato e dele depende? Respondemos agora: é o CsO, é ele a realidade glacial sobre o qual vão se formar estes aluviões, sedimentações, coagulação, dobramentos e assentamentos que compõem um organismo – e uma significação e um sujeito.

Nossa hipótese é a de que o jogo autoimposto numa autoexperimentação (ou compartilhado, como parte de uma aula) é um modo de produzir fissuras no solo dos estratos. Que é a razão que cria o jogo, mas ela sede espaço para a intuição, para a sensação, para uma composição que só pode resultar num devir-outro ao operar via esquecimento ativo, ao pôr-se em improvisação. Um jogo que se dá no pensamento, como não-sentido e paradoxo, e no corpo como sensação e intuição; movimentos que possibilitam, como uma chance que sempre retorna, no porvir que, paradoxalmente, se torna.

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