Seguimos com um excerto do texto da dissertação de mestrado, em processo, no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação.
***
Pesquisar, ensaiar: por uma poética da improvisação na Educação
Passamos a tratar, com as Lições de Poética, de Paul Valéry, da estrita relação que conferimos entre improviso e jogo. Esta pesquisa, com efeito, debruça-se sobre uma problemática onde intenta circunscrever a improvisação fora da correlação com a espontaneidade que é recorrente em estudos artísticos[1], mas, sobretudo, no senso comum. Para tanto, toma o improviso em seu sentido etimológico, ou seja, como o que não era visto de antemão, e propõe sua emergência para pensar o lugar da poética na Educação: trata-se de uma articulação com o imprevisível, a partir de restrições impostas por jogos inventados, para fazer assim funcionar, e vitalizar, uma aula e uma pesquisa. Considera, porquanto, que:
Por toda a parte, nos intelectos, encontro atenção, tateamento, claridade inesperada e noites escuras, improvisações e ensaios, ou retomadas urgentíssimas. Existe, em todos os lares do intelecto, fogo e cinzas; prudência e imprudência; o método e seu contrário; o acaso sob mil formas. Artistas, cientistas, todos identificam-se nos detalhes dessa estranha vida do intelecto. (VALÉRY, 2018, p.41).
Tomamos de Valéry (2018, p.13) a noção de poética: “entendendo-se essa palavra segundo sua etimologia, isto é, como nome de tudo o que se relaciona com a criação ou com a composição de obras em que a linguagem é ao mesmo tempo substância e meio”. Damos mais ênfase à noção de composição do que de criação, uma vez que a segunda tem uma predisposição para associações metafísicas; por essas via, a improvisação acontece num fazer imediato: ato instantâneo da mão que manuseia a escrita em estrito jogo com o pensamento que pensa o pensar; do olho que compõe o que vê em sua imediação, e no ato de olhar produz uma espécie de narrativa do que vê; corpo que medeia, ato do intelecto que inventa uma obra — inventar com o que se apropria, composição com a matéria circundante. Ensaio do artista-pesquisador que tateia na escuridão, e que encontra nos imprevistos, e sobretudo busca no improvável, a claridade que ilumina o potencial do pensamento, para que se siga pensando à espreita do impensado, do que é possível pensar um pensamento.
Este estudo, portanto, considerara uma composição jogo-improviso que possa criar condições de possibilidade para experimentações na pesquisa e na docência. Trata-se de um jogo que propõe lidar com o imprevisível, de regras que, como restrições, produzem desvios, desequilibram e nos tensionam em direção à periferia do que nos constitui, no limiar entre o que conhecemos e o que ignoramos. Neste limiar a poética emerge como o fazer deste docente-pesquisador, no jogo entre o que sabe, o que não sabe, e o que sente como necessidade para a manutenção deste fazer, pois “é a sensação própria do indivíduo que deve ser, como em todas as coisas, nossa guia: em suma, nossa necessidade deve ser nosso indicador” (VALÉRY, 2018, p.51).
E escrever uma pesquisa não seria um ato de improviso neste limiar entre o conhecido e o desconhecido? Podemos pensar que o texto se apresenta como um exercício de composição numa sala de ensaio da pesquisa: “não começa com Adão e Eva, mas com aquilo que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina quando sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer: ocupa, deste modo, um lugar entre os despropósitos” (ADORNO, 2003, p.17). Emana assim da necessidade de compreensão não para acumular conhecimento, mas para seguir pensando, para compor e operar com essas matérias nos fazeres da pesquisa e da docência, no sentido de que “às vezes somos o teatro de uma modificação, de uma construção verdadeira e própria” (VALÉRY, 2018, p.57). Trata-se de considerar um estúdio, um espaço onde estudar significa pensar no entorno do que nos seduz, de ensaiar, de tentar circunscrever algo. No que tange esta pesquisa em específico — no espaço deste texto —, tratamos da improvisação via uma escrita que se põe em jogo para improvisar sobre o tema da improvisação, ou seja: encontrar nela, nesta palavra, o que não era visto de antemão, conferindo força ao improviso como um modo de lidar com o que acontece (e pode acontecer) numa aula e no pesquisar.
Por conseguinte, desviar de uma compreensão da improvisação como algo da ordem da espontaneidade é condição indispensável para tomá-la no sentido de uma relação com o fora, e não como expressão da interioridade do indivíduo, da manifestação da sua criatividade. Um bom improvisador (no sentido spinozista do termo[2]) é este que lida com o que passa num instante, e neste ínfimo momento que escapa, nas imediações possíveis de um ato, opera uma imediata apropriação das matérias informes, produzindo, no que nos propõe Valéry (2018, p.21) uma obra do intelecto: “trata-se daquelas que o intelecto quer fazer para seu próprio uso, empregando para esse fim todos os meios físicos que podem lhe servir”. Mas, “um instante do intelecto, o que chamamos de um instante, pode ser considerado um sistema in fieri, necessariamente incoerente, incompleto, instável” (VALÉRY, 2018, p.55).
É nesse sentido, para lidar com o “necessariamente incoerente, incompleto, instável” que propomos o jogo enquanto um delimitador, definição de um espaço para exercitar-se, como num ensaio, para estudar e aumentar nossa capacidade de improvisar e compor. Para pensar a pesquisa-docência, pois, a noção de estudo — enquanto um ensaiar, exercitar-se, portanto —, nos interessa mais que a de ensino, por toda as implicações que a relação ensino-aprendizagem nos parece ter; de todo modo, e nesse sentido, estamos novamente com Valéry (2018, p.49), pois:
Se eu fosse obrigado a definir o ensino, diria que consiste em nos transformarmos o máximo possível, em transformar nosso corpo e nosso intelecto, para fazer deles verdadeiros instrumentos, mais dóceis ao que podemos chamar de desejo de superioridade. Nossa superioridade individual depende da flexibilidade, da obediência e da precisão desses instrumentos que são o intelecto e o corpo: instrumentos de quê? Instrumentos do instinto, sem dúvida, de uma ideia que se nos apresenta, de uma necessidade que percebemos. Quanto mais elevada é essa necessidade, quanto mais é rara, menos ela pertence à ordem das necessidades ordinárias do ser, e mais exige ductilidade, prontidão e precisão dos instrumentos de que falava.
[1] Citamos como exemplo o livro Improvisação para O Teatro, da autora Viola Spolin, importante referência para os estudos das artes cênicas, na qual ela afirma: “Os próprios jogadores criavam suas cenas sem o benefício de um dramaturgo ou de exemplos dados pelo professor-diretor, enquanto era libertados para receber as convenções do palco. […] Eles podiam colocar toda a espontaneidade para trabalhar ao criar cenas após cenas de material novo. Envolvidos com a estrutura e concentrados na solução de um problema diferente em cada exercício, eles abandonavam gradualmente seus comportamentos mecânicos, emoções, etc., e entravam na realidade do palco, livre e naturalmente, especializados em técnicas improvisacionais e preparados para assumir quaisquer papéis em peças escritas” (SPOLIN, 2015, p.28, grifo meu).
[2] “Será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém a sua natureza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição de potências” (DELEUZE, 2002, p.25).