O jogo, então. Mas um jogo que afirma o acaso, sem destino. Neste jogo o jogador não é, necessariamente, o humano: uma coisa pode nos jogar, e nós, uma peça em movimento, jogados. Nós, ainda que jogadores, jogamos com o que em nós é ante-humano, com o que é pré-individual — todavia, corpos.
Compartilho abaixo outro fragmento da dissertação, do texto denominado “Jogo em improvisação na pesquisa-docência: sobre estudos em exercícios”, que trata, de algum modo, desta questão.
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Por conseguinte, compreende-se necessário projetar-se às periferias, produzindo o descentramento do sujeito e dos espaços, porquanto estes nos vinculam, via recognição, às zonas de discernimentos e certezas (DELEUZE, 1988). É nesse sentido que é tomado o jogo: exercícios para pôr-se em movimento, em direção ao desconhecido; pôr em jogo nossa própria constituição enquanto indivíduos. Cabe notar que tais individualidades não são, senão, mais do que uma instituição do tempo, do que foi inscrito em nossos corpos numa educação escolar, familiar, enfim, no âmbito das relações. A questão é de que as forças que nos constituem tomam forma em relação com as forças do lado de fora. É isto o que nos aponta Deleuze (2006), ao tratar da “morte do homem”, em seu livro dedicado a Michel Foucault, no qual afirma: “Foucault é como Nietzsche, ele só pode indicar esboços, no sentido embriológico, ainda não funcionais. Nietzsche dizia: o homem aprisionou a vida, o super-homem é aquele que libera a vida dentro do próprio homem, em proveito de uma outra forma…” (DELEUZE, 2006, p.140).
Pesquisa e docência, a educação e a vida
Consequentemente, tanto no pesquisar, quanto na docência, aqui entrelaçados, compreende-se a condicional de fissurar os estratos que constituem tais noções de individualidade — das centralidades dos corpos e dos espaços —, para produzir o devir, via acessos intermitentes de individuação (SIMONDON, 1993). Esses acessos, que partem de um equilíbrio instável — levando os indivíduos de um estado ao outro, como paragens de um ser mutável, variando o que o constitui —, são tomados como a justificação do educar enquanto uma ação imiscuída com as incertezas, visto que não controlamos os efeitos deste fazer que se compreende poético, inventivo, assim, se “transformando numa educação nunca definitivamente fixada, jamais esgotada, intempestiva (no sentido de Nietzsche), a favor de um tempo por vir” (CORAZZA, 2013, p.98).
Frente às realidades dominantes, do que pode ser compreendido como Educação, intenta-se colocar os pressupostos em jogo, pôr-se em dúvida, pesquisar com o intempestivo. Pesquisa e docência que, de todo modo, afirma, modula, compõe, mas, “não são interrupções do processo, mas paragens que fazem parte dele, como uma eternidade que não pode ser revelada a não ser no devir, uma paisagem que não aparece a não ser no movimento”, é o que nos aponta Deleuze (1997, p.16), em seu texto A Literatura e a Vida. São movimentos têxteis, ou seja, produção de textos que, ao lidar com imprevistos, com o informe, considera que estes “não estão fora da linguagem, elas são o seu lado de fora. O escritor enquanto vidente e ouvinte, objetivo da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias” (DELEUZE, 1997, p.16). O pesquisador-docente, então, como vidente e ouvinte, um corpo engajado em composições nas passagens da vida.
Destarte, tal pesquisa-texto inventa, como parte de seu método, um labirinto que tensiona a relação entre pensamentos e escrita, colocando-os em jogo, no sentido de dar visibilidade a esta correlação, “pois o jogo é sempre jogo de ausência e presença” (DERRIDA, 1971, p. 248). Trata-se do labirinto como uma imagem do pensamento (DELEUZE, 1988), que figura na compreensão de um labor interno, labor do texto (COMPAGNON, 2007). Labor também de si, produzindo vertigens e delírios ao dinamizar esta estrita relação do pensamento e da escrita com o lado de fora; desequilibrando-se e retomando temporariamente ao equilíbrio, individuando-se enquanto corpo-pesquisador, e enquanto corpo-texto. Nestes movimentos, ao notar e anotar o que encontra nestes caminhos errantes, — noutros termos: perceber, se apropriar e compor —, sobre uma noção que denominamos de Poética da Notação, sempre à espreita de ideias imprevistas, compõe-se a matéria da pesquisa-texto.