SALA DE ESTUDOS

EXERCÍCIOS CONSTANTES: TENTATIVAS, AFIRMAÇÕES E HESITAÇÕES

       A partir de agora passamos a constituir, o que, devemos considerar, não é mais do que uma tentativa bem intencionada de uma introdução ao que esse espaço, em sua totalidade, parece querer propor. Tal intenção precisa afirmar então, desde seu início, o caráter incerto desta empreitada, uma vez que operando com as mais variadas matérias, as quais detemos a nossa frente e, sob um olhar estrangeiro, tentamos dotá-las de um sentido de totalidade: produzindo assim a amarração de um conjunto até então disperso e que, só passa a ser um conjunto, no ato que lhe afirma. Ato que não se afirma só, pois se trata de um estrangeiro que, ao chegar primeiro a este espaço, reconhecidamente textual, tratou de com ele alinhar íntimas relações e, após certo tempo de afinidade, parece crer ser capaz de apresenta-lo aos outros que chegam: ainda mais estrangeiros, portanto, que este primeiro. Notadamente, é preciso também ponderar, no início desta jornada — que nada mais é do que uma jornada dentro de uma jornada, ao fim das quais somos sempre estrangeiros —, que ela se faz com tantos outros que se atualizam em inconstantes passos deste percurso (passos ora firmes, ora titubeantes). Podemos assim imaginar-nos como andarilhos em um deserto onde pouco se vê no embotamento e confusão que sentimos ante os ventos que reverberam em nosso corpo, e sobre a poeira que, como fragmentos heterogêneos vagando pelo tempo, parecem de início atrapalhar nossa visão. De tempos em tempo, no esforço desta caminhada, e como numa vertigem, ao nosso lado aparecem outros forasteiros que nos contam de seus conhecimentos acerca desta geografia incerta, que nos auxiliam a ver o que pode estar ali e, com isso, passamos a ver: a matéria que vaga, poeira caosmica, toma forma em imagens que passamos, por nossa vez, forasteiros dotados de um recente saber adquirido, a contar à outros também. É um exercício constante de, sem querer sair do exílio, construir sua volta para casa. E é nesse exercício-caminhada, e como efeito dele, que propomos esta constituição, tal como nos foi possível pensar, e nisso ver, nos passos dados junto a Paul Valèry.

A continuidade desse conjunto furta-se ao nosso conhecimento, tal como acontece com esses informes farrapos de espaço que separam objectos conhecidos e vagueiam segundo o capricho dos intervalos; tal como se perdem a todo o instante miríades de factos, à margem do reduzido número que a linguagem desperta. Importa, contudo, que nos demoremos, que nos habituemos a eles, que superemos as dificuldades impostas à nossa imaginação por um conjunto de elementos que lhe parece heterogêneos. Toda a inteligência se confunde aqui com a invenção duma ordem única, de um só motor, desejando animar com uma espécie de similitude o sistema que a si mesmo se impõe. (VALÉRY, 1979, p.12).

       Trata-se então de, mesmo ciente de estar caminhando em um labirinto, empreender uma espécie de retorno, de tentar compreender a gênese deste espaço; ainda que sabendo, que ao tentá-lo, estaremos produzindo um duplo. Esta empreitada se anima ao considerar que “o que está em jogo é a variação dos estados, a confrontação de uma obra com todas as possibilidades que a compõem, tanto com relação ao que vem antes quanto ao que vem depois. É a mobilidade complexa e a estabilidade precária das formas” (SALLES, 2008, p.49). Portanto, estamos à espreita de um feito que “procura compreender e explicar a ação, já que convive com a continuidade e duração da gênese: planos, dúvidas, anotações, ideias tomando corpo, obras se formando, angústias e prazeres” (SALLES, 2008, p.52).

       Neste início então ousamos afirmar que esta pesquisa-texto (termo constantemente utilizado no decorrer dela), se propõe a este modo de análise crítica no momento em que, deliberadamente, apresenta o passo-a-passo de seu desdobramento compositivo: os encontros, conflitos e o texto tomando forma nos escritos diários são datados e expostos no que aqui se apresenta como uma Sala de Estudos[1]. O cotidiano da pesquisa, seus encontros e os dados coletados sobre uma perspectiva poética[2], são registrados com certa crueldade — no sentido de que não passam por um refinamento de juízo estético ou de premissas das demandas científicas. É sobre essa matéria “coletada” que a pesquisa se dobra, e assim se desdobra, numa espécie de eterno retorno e reescrita que difere na produção dos textos que passam a ocupar a Sala de Textos,  que por sua vez, se compõem numa composição combinada e meditada em seu acabamento, no que intenta dar a ver, ao intentar dar o que pensar.

        É como se a pesquisa aqui apresentada se constituísse num prédio que pode ser observado em seu acabamento refinado, porém sempre provisório e, ao mesmo tempo, na materialidade crua da estrutura que o formaliza; um acabamento do qual este texto passa a fazer parte, na Antessala, de modo que, num futuro, poderia ser analisado como desdobramento da pesquisa, em produção de outro texto — análise esta que também poderia ser feita sobre o texto que analisaria este, e, assim, sucessivamente, desdobrando e constituindo este prédio-texto ao infinito.

[1] Os textos que são apresentados nesta sala como notas compõe no seu conjunto um Bloco de Notas.

[2] Noção que poderá ser compreendida no texto Sobre uma Poética da Notação.

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