sobre uma poética da notação

A [Com uma Sociografia (encontros com fatos e com escritos)]

Então, o anotar como um modo de inventariar os encontros; os encontros de uma pesquisa; encontros que passam nesse estudo [nesse estúdio, nessa cidade], e que se compõe numa pesquisa-texto como que ao costurar tecidos num ateliê [ateliê de escrita]. Texto que pode ser pensado como autobiografia [da pesquisa e de si, na medida em que este pode se dar a ver nas forças das quais se apoderou, e que são apropriadas pelo texto (é possível supor suas sensibilidades e até os gostos individuais, mas o texto transborda o sujeito, ainda que deixe traços de seu corpo: um corpo-a-corpo, fricções mundo-indivíduo-texto)]; todavia, mais tem nos interessado operar, conforme temos exposto, com o termo autoficção.

Espaço do corpo, onde se pensa o pensamento, e o espaço de uma aula, onde os corpos se pensam neste dinamismo espaço-temporal [corpo-humanos, corpos-objetos, matérias, energia]. Assim, então, conforme nos apresenta Adó (2016, p.506):

Voltar-se para esse ato de produção do intelecto seria um modo de apostar nas forças do processo; naquilo que constitui uma expressão imanente ou imanência expressiva (MATOS, 2014; DELEUZE, 1996), como constituição variante de si por meio daquilo que se faz. […] Afirmar que um tipo de escrita sociográfica pode funcionar como uma maneira de produzir efeitos entre e sobre os efeitos que se produzem em uma aula. Trata-se de tentar constituir traçados que afirmem a prática como teoria e a teoria como prática, e que ambos os movimentos evocam fragmentos de uma autobiografia da docência operando em aula.

            Afirmar a pesquisa como criação, porquanto operando sobre a escrita e esta sempre em jogo com o que não pode ser apropriado, senão sobre uma transcriação. Assim, projetar o notar e a anotação como uma tradução do pensamento em texto, pensamento de/num corpo que pensa a superfície de seus dias, onde “toda escrita é uma tradução e toda tradução comporta, sem ilusão, uma convivência com o falso” (ADÓ, 2016, p.515).

            Perspectivamos o cotidiano em um perspectivação da escrita e, ao pensar a linguagem [e ser pensado por ela], nos autocriamos ao recriar o que encontramos.

Quando se opta pela noção de sociografia para perspectivar o cotidiano, é por entender, em um âmbito prático, que, ao falar em sociografia, estamos arquitetando que a observação de processos sociais e do próprio observador nele inserido pode e é concebida por uma escrita que se decide, também, como autocriação e como autobiografia (ADÓ, 2016, p.509).

            Anotamos para a pesquisa tudo que nos afeta: registramos, listamos, destrinchamos, estripamos, rasgamos, colamos, traçamos, amarramos, alinhamos, contornamos, informamos.  Entre fatos cotidianos e os textos que lemos; entre descrições e delírios, entre filosofia e arte: a educação. E retornamos, retomamos [ou esquecemos], nos repetimos, nos desdobramos, nos refizemos em outros textos, como outros que sempre passamos a ser a cada passagem que nos comporta.

 

B [Procedimentos (notação, utilismo e composição da pesquisa)]

Passamos agora a apresentar os processos de escrita da pesquisa, num passo-a-passo, assim como temos procedido em sua composição desde uma perspectiva temporal.

 

B1 [Notamos (vemos, intuímos, inventamos e variamos)]

            É o primeiro momento, e talvez o mais importante, ao qual se relaciona diretamente nossa ideia de jogo e de improviso [e do Corpo Potencial como este que se dispõe à pesquisar (e a viver) neste estado de prontidão em jogo]. Estamos em estado de atenção dispersa, à espreita, como à pescar, agarrar, ou mesmo supor algo que passa. Disso fizemos nossa primeira anotação: esta tende a se dar num aplicativo, no celular, e que, salvo na “nuvem”, é posteriormente acessado através do notebook [que aqui reforça seu sentido de “livro de notas”]; este aplicativo se chama Evernote [que poderia ser traduzido como “perceber tudo” ou “tudo anotar”]. Essa primeira anotação também pode ser feita num caderno ou rascunho que se tenha à mão – o qual também pode ser fotografado e salvo no mesmo aplicativo. Ademais, o Evernote também possibilita registrar arquivos audiovisuais, quando na impossibilidade [ou não interesse] de notação escrita [grava-se assim um áudio enquanto se caminha pela cidade (caminhar, aliás, nos parece um bom exercício para a pesquisa)], bem como se arquiva sítios da internet e se fotografa livros compartilhados em aula ou grupo de estudo [pouco escapa (e muito se acumula)].

 

B2 [Anotamos (excitados e solicitados a escrever)]

            O sentido de passagem é um dos significados do prefixo a, do latim: anotar. Essa passagem aqui tem um sentido transcritivo, ou de tradução do que foi primeiramente notado para uma notação escrita que ganha status de Nota em nosso Bloco de Notas. Em síntese, são dois processos não necessariamente separados, mas com suas especificidades: um primeiro efeito de notar o que passa quase despercebido, que incomoda, mas não chega a ter força para materializar-se numa escrita que possa compor a matéria-texto [como um dado coletado que compõe o texto-pesquisa (no que estamos chamando de Bloco de Notas[1])]. Assim, essa matéria escrita ou se dispõe numa anotação livre no aplicativo Evernote [para depois talvez ser retomada] ou, quando um encontro nos afeta com maior força, este escrito passa a compor o nosso Bloco de Notas [essa nova nota será datada e desde já não apagada (mesmo que posteriormente denegada pelo próprio pesquisador no desdobrar dos estudos, pois tem mais a função de demarcar os rastros da pesquisa, do que afirmar qualquer certeza, mesmo que provisória)].

            Sua eleição à nota no Bloco de Notas [na Sala de Jogos] não depende necessariamente de sua força poética ou influência filosófica, nem tampouco qualquer outra consistência da qual possa ser feito. O que diferencia a escrita no Evernote da feita diretamente em nosso Bloco de Notas [então com o aplicativo de textos Word e salvo na pasta “Dissertação”,  no computador] tem mais a ver com um estado corpóreo, com uma excitação, como uma ideia que nos solicita ser citada [anotada]. Tem a ver com o estado de improviso como o estamos pensando: como um corpo à dar a ver [e que este feito não é sempre dotado de uma consciência ou controle de quem escreve, ao contrário, muitas vezes pode tratar-se de um encontro com o Fora (sobre o qual falaremos mais a frente), de uma estranha relação com o desconhecido que, sem embargo, nos move a escrever neste limiar sempre móvel do conhecido (e da nossa ignorância)].

            Esse Bloco de Notas é assim composto e ordenado na ordem de sua escritura – e essa data muitas vezes é seu único título. Cada nota é resultado de um encontro com uma citação de um livro, ou algo que se viu, uma conversa de whatsapp, uma imagem qualquer ou outro acontecimento. Podendo se manifestar em diversos estilos de escrita; pode ainda essa nota ser provedora de outra nota futura [pois essa primeira nota é matéria de futuros encontros, podendo incitar outras notas que desdobrem algum ponto desta precursora, ou corrijam, ou complementem].

            Tal Bloco de Notas compõe nossa Sala de Jogos e que, conforme ela explica em sua abertura, pode ser lido de várias formas, tal como um livro-rizoma, em conexões transversais. Ou como um quebra-cabeça [onde as peças não necessariamente se encaixam (pertinente sentido de quebrar a cabeça, como o que pode produzir fissuras, violência, desvios, o pensar no pensamento)].

            É importante então considerar também que essas notas são imaginadas como peças de um jogo; dentro delas se dispõe peças menores, com destaque para as citações dos textos lidos, que aqui [no Bloco de Notas] são mantidas sempre como foram encontradas – não se utilizando da paráfrase como procedimento de escrita [o que só passa a ocorrer no terceiro passo da pesquisa (ao qual nos encontramos ao escrever este texto, por exemplo, que se compõe das forças tomadas das matérias de um pesquisar, inventariadas no Bloco de Notas – mas não só, pois ao ser reescrito se apropria de outras matérias)]. É um livro-jogo [de um jogo-dança].

            Destacamos também que estes procedimentos mantém um intento que apareceu num primeiro escrito que inaugurou o Bloco de Notas [e a pesquisa-texto (em 06/07/2017)]: um jogo autoimposto para uma escrita com o que passa no pensamento, sem pausa e sem apagamento [uma escrita em improviso] para tentar “expressar” o que passa nas superfícies do pensar: o que se estava pensando e sendo dado a pensar. Neste texto inaugural se escreveu acerca de uma pesquisa que tudo inclui, que aceita e joga com o que possa ser “suas” falhas; ou mesmo erros; que aceita e compõe suas forças com as próprias fragilidades – pois essa fragilidade se associa a flexibilidade e a leveza de quem não quer ter a razão, e entende que a falha pode abrir espaço de pesquisa, enquanto aponta em suas fissuras possibilidades futuras, trabalhando assim sobre uma ignorância ativa.

           Por esse motivo [entre outros que podem ser encontrados num futuro] nos remetemos a uma certa ideia de utilismo [surgida, como tantas outras, numas das reuniões do grupo de pesquisa]. Esse utilismo se diferencia do utilitarismo interesseiro e que, por isso mesmo, descarta com certa facilidade o que não serve mais à perspectiva adotada pelo sujeito atual: assim entende [o utilismo] que a pesquisa transborda o indivíduo na qual se detém no momento atual do pesquisar, se projetando em outros [outros-eus futuros a reler-se (no desdobramento da pesquisa) e, evidentemente, aos outros-leitores].

 

B3 [A dobra (o Eterno Retorno e a recomposição)]

            O conceito de Eterno Retorno em Nietzsche tem como uma relação de ação centrípeta, que afasta o que não ganha força junto ao centro de perspectiva (MACHADO, 2009). Nossa Sala de Estudos dispõe as notas em ordem de escrita e as mesmas são relidas frequentemente no pesquisar [o que compõe (também) a ascese (labiríntica) da pesquisa], enquanto outras notas estão surgindo e por surgir [e não se sabe de antevista quando por ventura vão findar (se por esgotamento ou definição arbitrária do tempo)].

            Entre esse processo de releitura e de criação de novas notas a partir dos encontros deste pesquisar no tempo, algumas ideias vão ganhando força enquanto se repetem. Ao ganhar força e materializar-se no pensamento, passam a desdobrar-se em outro texto – estes ocupando de outros espaços [é o caso da Dissertação e de artigos presentes na Sala de Textos].

            Uma observação quanto aos artifícios tecnológicos: o Bloco de Notas passa a ter uma importância prática na pesquisa como um “punhado de achados”, como nosso inventário de encontros. Com ele costuramos nossos textos futuros [ênfase aos ensaios/artigos na Sala de Textos]. Para isso, no computador, junto ao Word, abrimos dois arquivos: um que contém o Bloco de Notas, onde buscamos fragmentos já escritos e citações “coletadas” com a opção “localizar” [página inicial > localizar], e o segundo, no qual reutilizamos esses fragmentos numa nova escritura em criação. Este procediento nos possibilita retomar ideias e compor novos textos de forma dinâmica; nos coadunamos, assim, com uma certa ideia de produtivismo vitalista [ideia também surgida no grupo de orientação, por ser ainda desdobrada] – que produz sem esvair suas forças, mas, ao contrário, operando como um dínamo, onde movimento gera movimento potencial [e a escrita leva a mais escritas].

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