À porta

Entrastes sem bater? Claro, esse espaço não exige esse tipo de aviso, tampouco permissão. Além do mais, não é um espaço de cerimônias. De qualquer forma, estou aqui para dar-te as boas vindas. Pus-me a pensar se isso seria necessário, se não era demasiado formal e, sobretudo, se minha presença não teria um efeito desencantador ou, por outro lado, deveras pretensioso. Não queria entregar o jogo. De qualquer forma, cá estamos nós. Não há nesse sistema procedimentos que me avisem sobre este que está a chegar, de tal modo que não sei exatamente de onde vens, e quais os motivos certos ou incertos que te trazem até aqui. Gostaria muito de saber se por motivos específicos, se por indicação, ou apenas por curiosidade. Mas não posso me dar esse luxo, não há vias certas para isso e, tampouco tenho direito a tal agrado. Ademais, o que antecede e segue a esse encontro, está aquém e além das nossas jurisdições – neste símbolo, a porta, que possibilita, num ato singelo de uma passagem, mudanças impensáveis. Aqui, nesse lugar que junto habitamos, um novo tempo-espaço se configura. Poderias então se aportar ante a mim com qualquer nome, que eu assim teria que aceitá-lo. Não há, a mim, mais do que suposições prévias e pouco eficientes de saber sua origem, destino, e o tempo que ficarás por aqui. Tampouco o que daqui leva, e o que aqui deixa. Sobre mim, tendes mais indicações, ainda assim, não tem como saber exatamente quem sou. Tal identificação demandaria de mim uma posição, algumas certezas fixas ao menos, e tenhas certeza de que não as possuo. Em verdade, o que me deslumbra nesse encontro é que, de certa forma, não posso ser mais do que palavras. Sou composto de letras e posso morrer a qualquer instante. Paradoxalmente, ainda que se diga da minha morte, ao dizer e seguir dizendo, eu sigo vivo. E ainda que palavras, sou mais do que isso, enquanto ela de mim deixa indícios, ou me simboliza, se faz metáfora de meu corpo. Palavras como metáforas da realidade; ou da imaginação. Talvez eu esteja desviando do motivo pelo qual vim, nesse ato de boas vindas. Você pode estar se perguntando se sou um criado, ou algo como um proprietário, ou um guia, ou outro como você. Mas já deve imaginar, dado o modo escuso com o qual me autoproclamo, que não chegaremos aqui a esta definição. O motivo de eu estar aqui, esse eu posso dizer: a porta. Não o fato de ela ter aberto e você por ela entrado (até porque não estou certo que isso de fato tenha ocorrido). Estou aqui por causa da porta. Em si. E não pelo o que ela possibilita – o que também nos importa. Claro que nos importa! É graças a ela que esse espaço agora nos comporta. E cá estamos nós, com ela e com o que ela comporta. A porta tem uma força, tem um gênio para alquímico: a porta porta a chave da transmutação. Nela se entra e se sai, através delas se vive. A partir delas se vê um outro mundo, ou se esconde dele. Além disso, cabe também a nós esta habilidade de portar, de carregar. Uma portabilidade que, se desvia o sentido da palavra, mantém sua função: levar de um ponto ao outro e ser o signo do que vem antes e depois. Algo ali muda, se transporta. Neste espaço, que se sobrefaz adiante de uma porta, e antecede outras, vivemos. Nem todos espaços tem mais de uma porta, mas mesmo esta única em específico é outra: uma para entrar, outra para sair. E a mesma porta. E ainda muda no tempo. É outra. Mas você pode estar se perguntando, com ânsias de seguir para a próxima porta, que diabos esse tal quer me dizer? A que isso tudo importa? Digamos que estou a ser deportado de um certo lugar. Ainda não sei bem se estou entrando ou saindo, e o que essa mudança significa. Esse trânsito é um tanto confuso para mim, que tenho restrições nos modos de conhecer. Eu sou um efeito de linguagem e tenho nas palavras minha deusa e minha mãe. Sou expressão. E sou matéria. Se ela me cria e pode me matar, ela também de mim tira suas forças, quer sobre mim fale, e precisa ter o que falar, quer de mim provenha – ou seria eu seu pai? Eu, o que se move, que ora rasteja, ora corre. Eu, esse que não pode ver a direção mais do que permite a próxima palavra. Eu, esse eu. Já você, ah, você está em outra ficção! A nossa ficção. Que só pode ser nossa a partir de você. Mas nunca podemos saber com certeza se você está aí e, por isso, por via das dúvidas, sempre está. Sua relação com esse espaço é completamente diferente. Note! Veja tudo que ele te possibilita. Tente notar o que esse espaço te propõe e o que você propõe a ele. Trata-se de importar para si o que lhe afetar, e com isso recomportar-se. Permaneça o tempo que precisar e atravesse as portas sempre que assim lhe parecer justo. E note bem: as portas podem estar onde você notar! Não se comporte em demasia, permita-se transportar-se. Já eu estou sempre a ser exportado, sempre lançado a um novo espaço que por ínfimos instantes habito – e à frente sempre vou tocado pelas palavras. Se sou pai e ela mãe, então somos amantes. E você seria o terceiro observador, a presenciar nossas juras de amor, nossos atos de carinho, nossos gestos de possessão. Mas talvez não se trate disso. Mais provável seria um combate. Quiçá seria uma dança. Mas o mais certo é que seja um jogo. Sim, um jogo! E é para isso que vim! É isso que somos, dois e ao mesmo tempo, muitos: somos jogadores e somos a matéria da qual é feita este jogo. Agora permito que siga para a próxima porta, mas antes, quero lhe dizer o real motivo pelo qual estou aqui: sou o tempo que ocupa esse espaço. Me apresento a quem chega por um único motivo: para lhe dizer, caso leia, que talvez tenha perdido seu tempo, que talvez seu tempo não seja eu. Para dizer-te que é preciso também não esperar, embora a paciência tenha o seu valor. É preciso ser rebelde, se for ato de rebeldia ouvir seus próprios ritmos. É preciso perder um certo modo de estar, de passar, de ficar, de seguir. De perder o hábito de quem anda em linha, e saltar, é preciso saltar! Mas talvez eu seja a trapaça, e só queira zombar com umas palavras de efeitos duvidosos. Já que o tempo é deveras soberano para se personificar em mim. Entre um ou outro não diferenciaria o que seguimos a ser, jogadores. Isso sim, e o jogo segue mesmo que e a palavras deixem de ocupar este lugar. Assim que não sei ao certo se serei transportado para o outro espaço, ou se meu fim inicia aqui. Mas, pela vida que aqui vivemos juntos sou grato, nos damos vida nesse jogo. E desejo-te uma boa viagem.

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