prólogo

Este texto se contrapõe a outro, o de apresentação[1]. Apresentar o que se fez foi uma ação a qual resisti durante todo processo de pesquisa de mestrado (ao menos até os últimos dois meses), e que agora tem nesse conjunto, a Dissertação, algo como uma prova, um fato, um dado, um fado. Expor, assim, nesses termos, minha hesitação em apresentar, já é, de uma maneira estranha e, espero, não muito enfadonha, uma apresentação: o problema estaria no excesso de sentidos que gostaria de evitar para dar espaço as presenças (me pergunto: para que a-presentar, no sentido de trazer a presença, algo que já está ali?). Portanto, e para evitar demasiadas digressões, vou expor em pequenas notas as questões que permeiam, nas entrelinhas, toda a Dissertação (e todo este ciberespaço, na qual ela se articula, eis a questão):

  • Tenho como inoportuno, e em certa medida até arrogante, por parte de quem escreve, a suposição de saber tanto sobre este outro corpo, ou espaço (os modos como me ocorrem ver o texto), e, sobretudo, falar dele como se fosse um cadáver — quando em verdade não só está vivo, como já seguiu seu próprio caminho;
  • Ainda mais arrogante seria o pressuposto de que sua apresentação deste a outrem possam valer de algo: ao contrário, me parece que o mais provável é provocar um engessamento da leitura em pressuposições, como uma ingerência sobre o corpo do leitor, governando seus sentidos por intrusão de postulados — o que de fato não creio que possa ocorrer, mas produz efeitos correlatos.
  • Mesmo que esse corpo (o do texto) seja, para o bom entendimento social, propriedade sua, dado a autoria demandada pelas instituições; digo: de nada me parecem meu os textos, tenho com eles uma relação inversa: considerando que o ‘eu’ seja uma confluência de forças que destoam de um corpo (‘meu’ corpo), numa composição dominante (de perspectiva, de convicções, de pressupostos e disposições maneiristas), donde o texto é justamente o lugar de combate, onde coloco esse eu a prova, o espremo aos cantos, tento lançar lhe para as periferias.
  • Dado que esta pesquisa intentou escrever o que não sabia, agindo sobre o inesperado e improvável, deles deixando marcas, resulta que o texto, assim, quando o leio, não raramente, fico surpreso com o que encontro. Escrever me parece ser o exercício mais efetivo — dos que até agora experimentei — de registrar as multiplicidades que me compõe, principalmente as imprevistas, e de provar (no sentido de experimentar) a improvável gama de coisas que passam por mim e que, suspeito, ao treinar-me nessa escrita que tem em vista o imprevisível,  possa me tornar um potencial captador e transcritor de imprevisões.
  • Cabe registrar então que esse corpo (tanto o do texto, quanto o meu, em correlação) seria um espaço composto de forças internas em conflito, forças em tensão também com forças externas, intrusas, nômades, de passagem: escrever aqui significa um jogo com essas forças em favor de visibilidades, uma poética que labora para dar-lhes formas, de torná-las matérias úteis para composições dotadas de vitalidade; ou seja, modular, ao notar e anotar, para compor, recompor e afetar outros corpos; trata-se de corpos como poder de afetar e serem afetados, e de, nesse jogo, comporem outra matérias com esse potencial — uma espécie de dança-combate entre corpos e incorpóreos, matéria e expressão: o dançarino e a música, o escritor e as palavras; um palco que ganha corpo enquanto espacializado, o texto que se espacializa quando composto, pelas palavras, em corpo.
  • Logo, espero que fique evidente o problema com a autoria, com a suposição de nexo, de entendimento, e nisso de apresentação de ‘sua’ obra; sem romantismo ou falsa modéstia (à avessas), é mais provável constatar que seria eu, hoje, a obra (ou dobra) deste texto: que ele fala mais de mim do que eu possa falar dele.

Resta então, pelo espírito de prudência que em mim habita, fazer algumas pontuações, sobre notas também curtas, à favor da apresentação que, apesar de tudo, segue atuando na Dissertação:

  • Embora todas considerações supracitadas, tenho uma boa recepção, como leitor, dos textos que chegam com uma apresentação, pois sinto como um esforço do escritor, um ato daquele que diz que aquele caminho teve certa intenção, da qual, com efeito, o leitor tirará suas próprias conclusões; isso, claro, a mim interessa se nos termos de que essa intenção tenha uma origem incerta, para além da razão justificada, centralizadora do mundo (e do mundo do texto).
  • Que a apresentação, na balança dos prós e contras, facilita a entrada do leitor ao texto, sobretudo no sentido de diminuir sua tensão para com questões não tão importantes (me refiro ao desconforto e a angústia que emana em torno da necessidade de entendimento, que é problemática, mas de todo modo nos afeta — nós humanos, demasiado humanos); para que se possa, por consequência, fruir do encontros da e na leitura, uma vez que já se sente possuidor de ferramentas básicas para a compreensão destes.
  • É, portanto, somente sobre a égide da ficção que essa apresentação é possível: na cumplicidade do flerte, no aceite disfarçado da trapaça, sobre a inconformidade do riso eminente sobre si mesmo, apesar de todo o rigor empregado; enfim, no acordo discordante sobre o qual se lê um texto: são só palavras, frágeis, diríamos, mas através delas passa o mundo. Podemos supor que há um contrato sobre o texto, mas autor e leitor não o assinam, pois é o texto que detém seus direitos — mesmo que ele não possa assinar ao final deste documento, para fins de juízo, pois sua rubrica é uma mistura incerta de muitos nomes;
  • E que, por fim, tenho uma tendência — que meu gênio me induz (ou sou seduzido) — para a produção e recepção de textos que apontem, e mesmo que nos coloque (escritor e leitor), num espaço de incerteza, labiríntico; e também sou afeito a considerar que isso teria mais força, do ponto de vista da produção com e a partir do pensamento, do que ‘textos lineares’.

[1] Trata-se da apresentação da Dissertação, produzida com pré-requisito para obtenção de título de Mestre em Educação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

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