SALA DE ESTUDOS

O ACASO TEM SOBRE MIM MAIS DIREITO DO QUE EU

      Ao chegar ao final desta introdução, o leitor prostrado ante este texto pode encontrar-se em dúvida: como saber se os fragmentos apresentados são mesmo retirados de manuscritos ou são mais uma invenção na ordem desta escrita? Não seria este que escreve um mesmo a escrever sobre o que outrora havia escrito? E qual a implicância disso? Poderia este ser um outro? Mas que outro? Qual os motivos, ou as condições, ou as convocações que lhe colocam a produzir tal texto? Um texto autônomo, uma escrita impessoal, são possíveis? Mas, de outro modo, é essa a intenção? Acreditamos que a leitura do conjunto pode, no encontro com os exercícios de escrita tomados sobre a métrica incerta da experimentação (e sob uma postura de leitor, pressuposta também em exercício experimental) desdobrar essas questões, simular boas respostas (enquanto boas composições) e, talvez, sobretudo, incitar outras perguntas.

       Cessamos diante do que pudemos alcançar até aqui, do que nos foi possível com a força motriz das nossas pernas que parecem não ter nos levado tão longe e, ainda ao final, sentimos estar no mesmo lugar: um deserto labiríntico que agora podemos chamar de casa (e que as vezes nos aparece como um jardim). Parece que o passado nos toma: esse outro que fomos insiste em bater à porta ao mesmo tempo em que, por vezes, antevemos nosso porvir. Desta antevista, e que por fim talvez reforce a dúvida sobre a veracidade deste texto introdutório, passamos a apresentar o que, assim nos parece, tende a ser uma citação com a qual assinaremos o final do projeto de pesquisa, numa última nota na Sala de Estudos (a de número 100), numa data provável que aqui registramos: 06 de julho de 2018, exatamente um ano após a primeira nota. Pois este labirinto, este jogo autoimposto, se coaduna com a ascese e com o cuidado de si em planejamentos que permitem a constituição deste território no qual se projeta — ainda que para depois, eventualmente, possa se perder. Mas e como se saber se este parágrafo que agora finaliza esta Introdução ao Método foi aqui escrito antes daquela nota, de 06 de julho? Fácil, basta confirmar na data registrada ao final desta introdução. Ao fim e ao cabo, qual seria a diferença entre real e ficção, para além dos nossos anseios de controle e compreensão em demasia?

Eu não tenho bom domínio e decisão sobre mim mesmo; o acaso tem sobre mim mais direito do que eu, a circunstância, a companhia, o próprio balanço de minha voz tiram mais de meu espírito do que nele encontro quando o sondo e utilizo por mim mesmo. […] Também acontece de eu não me encontrar onde me procuro, e de me encontrar mais por acaso do que por investigação de meu julgamento […] Perdi tanto a memória que não sei o que quis dizer, um estranho por vezes o descobre antes de mim. Se suprimisse todos os trechos em que isso acontece comigo, me desfaria de tudo. O acaso me iluminará, alguma outra vez, com luz mais clara do que a do meio-dia; e me deixará surpreso com minha hesitação. (MONTAIGNE, 2017, p.70-73).

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Porto Alegre, 23 de maio de 2018.

(texto iniciado em 19 de maio do mesmo ano)

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