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Aqui inicia uma epígrafe.
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Apresentamos esse texto como uma espécie de espaço. Estamos numa antessala. Esta antessala, apesar do nome, não está necessariamente antes – é a força do hábito que nos faz pensar que começamos pelo início. Em contrapartida, um livro pode ser aberto em qualquer parte. Esta antessala, apesar de estar no início, está no meio: ela dá acesso a nove portas, entradas para uma sala de apresentação, de ensaio, de aula, de estudos, cênica, de vídeo, de textos, de fotos e de visitas .
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Apresentamos esse espaço como uma arquitetura incerta: incerta porque reinventada na sua leitura.
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As portas comportam variações, desaparecem e reaparecem como num delírio, que nada mais é do que as conexões do pensamento não assimiladas pela razão. Essas conexões transversais podem transportar o leitor de uma sala para a outra, ainda que, eventualmente, sem sair da mesma: assim pode-se experienciar uma sala de aula como se fosse uma sala de ensaio, uma sala de ensaio como se fosse uma sala de vídeo, uma sala de vídeo como fosse uma sala cênica, uma sala de cênica como se fosse uma sala de aula, uma sala de aula como se fosse uma sala de vídeo, uma sala de vídeo como se fosse uma sala de ensaio, uma sala de ensaio como se fosse uma sala de textos. E vice-versa.
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O arquiteto já saiu deste espaço, mas seus traços, desenhos e suas composições seguem nas salas e formam suas paredes e os signos que ocupam esses vãos. Seria possível que esboçassem os contornos de seu rosto, não fosse pelas dúvidas que ensejam a manifestação incerta desta arquitetura, dada a constituição movediça de suas formas, que se quer deixam transparecer a identificação da assinatura clara de um autor. Sob tais incertezas, pode-se hesitar se estamos a reconhecer os feitos de um arquiteto, um inventor alquímico, ou se tratar-se-á de uma bem intencionada trapaça.
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Pode-se supor, e o fizemos com o conhecimento que nos cabe, de quem com cuidado previamente visitou os espaços que agora apresentamos, que o arquiteto seguiu um percurso laborioso, mas que de nenhuma forma a nós se apresenta com pesar. Ao contrário, os traços que encontramos nos detalhes dessa arquitetura esboçam um sorriso (e com paciência e o tempo suficiente podemos encontrar, em pequenos instantes de espaço, intensas gargalhadas). Ademais, tal como Deus, que escreveu certo por linhas tortas, o nosso arquiteto duvidoso, ao qual parece não incomodar a pecha de trapaceiro, seguiu vias incertas, mas, diferente de Deus, que neste momento já estava morto, não chegou em lugar algum.
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As diferenças que se apresentam em cada sala não permitem precisar a técnica que foi utilizada para sua feitura. O mais próximo que pudemos chegar, e a tese na qual nos embasamos, é que se trata de um método da repetição esquecida. Cada sala parece igualmente diferente da outra, e nisso se repete. Contudo, ao utilizar a memória para analisar as semelhanças, aí as encontramos. E enquanto realizávamos essa análise, encontramos no canto de uma das salas uma peça pregada, e nela dizia: a realidade é uma ficção, desfrute o jogo da invenção.
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Seguimos nosso processo analítico e descritivo, mas afetados pela potência dessa afirmação: a realidade é uma ficção, desfrute o jogo da invenção. Contaminados por esse efeito, duvidosos das nossas certezas, nos sentimos adoecer, nossas forças a escorrer por buracos que até então desconhecíamos. E quando pensamos que chegava nosso último suspiro, ele se apresentou como uma grande gargalhada, e do chão onde nos encontrávamos, pudemos avistar um bloco de notas e nele dizia: tome-o, é seu, aqui está anotado o que precisa notar para essa viagem, e o que notar está anotado por ti.
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Primeiro fez-se o verbo. Com o que se é possível perceber aí se diz a realidade: se vê e anota; nota, e ao anotar o que nota, faz ver o que pensa que vê. Aí está nossa sala de estudos. Pelo verbo se inicia, mas como o começo já iniciou, poderás escolher outra sala.
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O segundo é a repetição do primeiro mais ele mesmo, que é e produz um outro. Ao ver e dizer, ou ler e escrever, de certo modo constituímos nossa existência, e aí está nossa sala de ensaio. Nela, como nas outras, nos autoexperimentamos, em comunhão solitária.
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Não à santa trindade, mas com a sagrada oração do silêncio; aos pés dele nos aconchegamos, com sua presença corpulenta, quase onipresente. O Silêncio é o nosso Deus, que possibilita a fala, pois o silêncio não é falta, é o corpo potente que a nós se oferece como espaço de inscrição dos nossos mais íntimos desejos – quer deles saibamos ou não. E aí está nossa sala de textos.
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A incerteza como certeza da existência. A morte como transformação, e a transformação como a única permanência. Aí está nossa sala de aula, repleta de currículos paradoxais.
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A chave de entrada nas salas é a disposição, e essa disposição se apresenta ora como coragem, ora como alegria, ora como perseverança e paciência. Essas não são salas de cinema, salão de beleza ou salões de festas, apesar de serem repletos de imagens, algumas belas, e espaços diante dos quais podem se apresentar grandes diversões (sobretudo aos que tem pés leves para o bailado).
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Entre e permaneça o quanto suportar. Lembre-se que o esgotamento nos abre outras portas. E lembre-se que é preciso esquecer. Em cada espaço tem uma saída de emergência.
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Boa viagem.