SALA DE ESTUDOS

[108] 03/01/2019

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O objeto desta Ciência da Imprevisão (outro nome possível para Ciência Nômade do Improviso) é O informe: ou seja, o que é da ordem do sensível (só percebido via afecções); se visto do ponto de vista da física: é energia, movimento; logo, mesmo que seja evidente, é preciso reforçar, é a-significante. Daí o paroxismo desta ciência: ela estuda o que não tem sentido e, somente nesses termos: tudo que passa para o âmbito da linguagem já não lhe interessa e está fora do seu domínio! Assim, jamais se esqueça: “é de fenômenos sutis que estamos tratando” (ROSA, 2005, p.114).

Façamos uma distinção em quatro tópicos, de modo a dar a ver “as características de uma tal ciência excêntrica” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.25). Portanto,

seriam as seguintes: 1) Teria inicialmente um modelo hidráulico, ao invés de uma teoria dos sólidos, que considera os fluídos como um caso particular; com efeito, o atomismo antigo é indissociável dos fluxos, o fluxo é a realidade mesma ou a consistência. 2) É um modelo de devir e heterogeinidade que se opõe ao estável, ao eterno, ao idêntico, ao constante. É um “paradoxo”, fazer do próprio devir um modelo, e não mais o caráter segundo de uma cópia. […] 3) Já não se vai da reta a suas paralelas, num escoamento lamelar ou laminar, mas da declinação curvilínea à formação das espirais e turbilhões sobre um plano inclinado. […] O modelo é turbilhionar, num espaço aberto onde as coisas-fluxo se distribuem, em vez de distribuir num espaço fechado para cosas lineares e sólidas.  É a diferença entre um espaço liso (vetorial, projetivo ou topológico) e um espaço estriado (métrico): num caso, “ocupa-se o espaço sem medi-lo”, no outro, “mede-se o espaço a fim de ocupá-lo”. 4) Por último, o modelo é problemático, e não mais teoremático: as figuras só são consideradas em função das afecções que lhes acontecem, secções, ablações, adjunções, projeções. […] Há aí toda sorte de deformações, transmutações, passagens ao limite, operações onde cada figura designa um “acontecimento” muito mais que uma essência (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.26).

EMPECÍLHOS À PRIORI

Essa ciência precisa, portanto, lidar primeiro com algumas resistência inerentes ao humano que nos constitui: se impossível destituir sua presença, pretende-se ao menos desviar-se ao pô-lo em jogo. Pois, a começar que os

[…] próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram. […] Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latente mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente… E então? (ROSA, 2005, p.114).

Contudo, se por um lado temos um corpo organizado — ou melhor, forças que produzem a organização dos corpos, donde desponta uma visão sedenta por encontrar sentidos, padrões, ritmos e formas, corpo que assim se habitua ou busca habituar-se, esse mesmo corpo é atravessado por forças outras, e é por elas desterritorializado; assim:

[…] os sentimentos são arrancados à interioridade de um “sujeito” para serem violentamente projetados num meio de pura exterioridade que lhes comunica uma velocidade inverossímil, uma força de catapulta: amor ou ódio já não são em absoluto sentimentos, mas afectos. E esses afectos são outros tantos devir-mulher, devir-animal do guerreiro (o urso, as cadelas). Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra. Velocidade de desterritorialização do afecto (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.18).

Pois, vejamos: se os afectos são armas de guerra, no sentido que, ao atravessar o sujeito que nos constitui — deveras humano e, assim, se não um inimigo ao menos uma espécie de oponente que resiste ao nosso método científico experimental —, precisamos criar condições para nos expor, para sermos afectados tanto quanto possível, e devir-outro (mas que seja um devir minoritário); esse devir-outro pode significar um encontro com um eu submerso sobre o humano, como um pré-individual: um devir-animal guerreiro, podemos considerar que aí em nosso corpo resida — ou que a partir dele, com outras matérias-forças, possa se compor e transformar. Assim, desde o problema da visão, sobre nossa imagem refletida no espelho (no gesto cotidiano de mirar-se), adentrando aos poucos na mais sutil percepção de si, procura-se (a espreita de uma versão imprevista de si, aquela que a vida improvisa a cada instante e que buscamos encontrar, via experimentos):

Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa,  funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que eu saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto (ROSA, 2006, p.116).

EXPERIMENTOS

Assim passamos a relatar os experimentos ao qual adentramos, os quais associamos à essa ciência que é objeto de nossa especulação: pois, lidar com a imprevisão, ao menos de início, demanda esforçados experimentos extáticos, que nos desloque, por milímetros que seja, da nossa condição humana. Cabe considerar que, nesse momento, eu estava já tomado pela possibilidade de um devir-animal guerreiro: primeiro, pela suposição humana do guerreiro, composta sobre a imagem do animal; segundo, que o guerreiro necessita de um desapego, de um tensão descontraída para empreender um golpe preciso, ou o desvio de um ataque improvável; ele não pode se agarrar a uma imagem de si, humana, familiar, sentimental, pois ela lhe instituiria um medo da morte, e esse medo lhe retiraria a atenção, reduzindo a eficácia de suas habilidades — que passariam a buscar a sobrevivência, quando elas precisam da ação imediata, desprovida de qualquer objetivo externo a si, externo a ação em si, pois a pré-ocupação lhe reduz a velocidade. Tendo essas possibilidades em mente, passei a experimentar, sobre as intempéries do dia, ao acaso, com um golpes precisos (ao menos com esse objetivo), algo que pudesse me servir de índice para provar o que, constatado, seria o solo inabalável desta ciência: que Eu mesmo era imprevisto para mim! Ora, pois, conquistado este feito, tendo-o como um fato dado, toda a realidade aparente seria coloca em dúvida, tão logo o observador emerge a cada instante, do Nada, em cada mirada, e de maneira imprevista. Assim,

operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliquidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma inabalável paciência (ROSA, 2005, p.116).

Estou afirmando, como pode ver, o estudo de coisas-fluxo: daí resulta sua principal dificuldade, pois que a ciência, em geral, necessita de um objeto de estudo, e uma coisa-fluxo, embora coisa, é, sobretudo, fluxo — ou seja, materialmente falando, um não-objeto; me faço entender? Vejamos:

Husserl fala de uma protogeometria que se dirigiria a essências morfologicamente vagas, isto é, vagabundas ou nômades. Essas essências se distinguiriam das coisas sensíveis, mas igualmente das essências ideais, régias, imperiais. A ciência que dela trataria, a protogeometria, seria ela mesma vaga, no sentido de vagabunda: nem inexata como as coisas sensíveis, nem exata como as essências ideais, porém anexata e contudo rigorosa. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.34).

Por suposto, para tratar desta Ciência da Imprevisão, desde a essência das coisas que seriam, em suas primeiras aparições, ou no nível molecular, nômades, vagas, vagabundas, rebatemos nossa ideia de uma ciência excêntrica sobre a imagem da Ciência Moderna, a ciência do Estado, a ciência do Humano: se estou, por essa via, me colocando numa espécie de combate com o humano é em favor do corpo — o corpo habitado pela ideia, pelo modo humano de ser, digamos, mas que é anterior e posterior ao humano. Estudar essas essências vagas — noutras palavras, o informe que nos constitui e ganha forma regido pelo antropocentrismo característico da modernidade, feito à sua imagem — é condição para perceber o corpo em sua complexidade: o ante-humano! Coisas-corpo, considero, ou corpos-coisa: “dir-se-ia que as essências vagas extraem das coisas uma determinação que é mais que a coisidade, é a da corporeidade, e que talvez até implique um espírito do corpo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.35).

É preciso não ver o que está ali, no sentido do que revemos por suposição, e ver o que não está, no sentido de que não vemos por não ser esperado. Paradoxal? Por suposto, os não-sentidos são matéria nobre (ou não-matéria) do método que estamos à inventar! Quando ao espelho, então, “era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo” (ROSA, 2005, p.117). É importante que “saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária” (ROSA, 2005, p.117). O que buscamos são rastros, pela caráter sutil do nosso “objeto”, assim:

Já não se trata exatamente de extrair constantes a partir de variáveis, porém de colocar as próprias variáveis em estado de variação contínua. Se há ainda equações, são adequações, inequações, equações diferenciais irredutíveis à forma algébrica, e inseparáveis por sua vez de uma intuição sensível da variação. Captam ou determinam singularidades da matéria em vez de constituir uma forma geral. Operam individuações por acontecimentos ou hecceidades, e não por “objeto” como composto de matéria e de forma; as essências vagas não são senão hecceidades (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.38).

DIFICULDADES ENCONTRADAS

Essas dificuldades não são, senão, o reaparecimento insistente do que definimos como empecilhos à priori: do nosso olho que vê em excesso, salta de um cabeção pesado, que mira e diz: é isso, é isso, é isso! Agimos, ademais, pautados por uma moral (parte significativa do peso desta cabeça), e não tarda a nos questionarmos, insensíveis ao avanços feitos em nossos experimentos, sobre os sentidos dessa busca, de quão absurda ela é: mas é isso, meu amigo, é isso a existência, A-B-S-U-R-D-A! Ela não te ouve, por isso não responde: tal como o espelho, que reflete o que pensamos ver, ouvimos o que dizemos: mas entre a fala e o eco esquecemo-nos a origem do som. Queremos tudo controlar: a forma é consequência da nossa expressão, do que expressamos, não há existências prévias à nossa ação no mundo: há, contudo, coisas que ali estão, claro, mas supondo que a existência não se dá alheia aos sentidos no coexistir, é o humano que faz as combinações.

Projetava assim essas questões no entorno da imagem de mim mesmo, no espelho, por uma reflexão cada vez mais lacunar, por traços imprevistos, detalhes não antes incluídos na minha feição, não suficiente sempre estarem ali.

Prossegui. Já aí, porém, decidindo-me tratar simultaneamente as outras componentes, contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário — as parecenças com pais e avós — que são também, em nossos rostos, um lastro evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto. E, em seguida, o que se deveria ao contágio das paixões, manifestas ou latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias. E, ainda, o que em nossas caras, materializa ideias e sugestões de outrem; e os efêmeros interesses, sem sequência nem antecedência, sem conexões nem fundura (ROSA, 2005, p.118).

Segui nesses experimentos. Passo então para o quarto e último ponto, mas sobre ele lhe peço uma mente de principiante, como se não tivesse a mínima ideia da medida do possível — que, por suposto, eu diria, não sabemos.

DEVANEIOS CONCLUSIVOS

Em dado momento de meus experimentos, como por esgotamento, ou habilidade adquirida, conquistei um modo de olhar que por pequenos instantes não via; não posso convencê-lo, nem a mim, de não se tratar de um efeito fisiológico, da vista cansada, ou mesmo da pressão sanguínea reduzida e seus efeitos de embotamento mental; mas, lembremos que não estamos operando sobre o binômio causa-efeito, donde o que nos importa são os acontecimentos: é disso que se trata a Ciência da Imprevisão, de acontecimentos puros, no instante em que surgem do Nada, e que aparecem sem sentido. Assim o fiz.

Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até a total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um… des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho — com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não mais que as crianças — o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejos entre miragens: a esperança e a memória  (ROSA, 2005, p.119).

Logo, destes experimentos denotam a possibilidade de desdobrar o que pensávamos (mas talvez a manifestação até aqui não tenha ficado clara o suficiente): trata-se de considerar que sob um espaço estriado (o da cidade, por exemplo), há um espaço liso, tal como há, sob a face uma massa, somente uma massa modulada, e sua consequente topologia: é a nossa tendência adquirida por ver buracos, e depois tubos, e depois medidas e órgãos e funções, etc., que produz o espaço estriado sobre uma pele continua, ainda que feita de dobras — mas uma dobra não é uma repartição.

Um campo, um espaço liso heterogêneo, esposa um tipo muito particular de multiplicidades: as multiplicidades não métricas, acentradas, rizomáticas, que ocupam o espaço sem “medi-lo”, e que só se pode explorar “avançando progressivamente”. Não respondem à condição visual de poderem ser observadas desde um ponto no espaço exterior a elas: por exemplo, o sistema do sons, ou mesmo das cores (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.40).

Não podem ser observadas, essas multiplicidades, de um ponto exterior, é preciso, pois, entrar no jogo, sentir na pele, ocupar-se do espaço: não se trata de ver, mas de perceber, notar pela pele (que de alguma maneira registra esses acontecimentos, como se anotasse os efeitos dessas afecções).

Agora podemos ver com um pouco mais de clareza — veja como sua presença me motiva! — que essa ciência que propomos, a Ciência da Imprevisão, ou uma Ciência Nômade do Improviso, não pode, nem quer, instituir-se de um modo definitivo, não quer inserir-se no quadro contemporâneo das ciência (a não ser que seja no limiar onde esse quadro perde a forma, se encontra com outras coisas…): seria, então o caso de definirmos como uma Filosofia da Imprevisão? Tampouco importa, estamos numa zona onde conceitos e funções se confundem, é podem ganhar facilmente — sem perde de força para o pensar — em ficção: mas não podemos esquecer que seguimos uma realidade experimental, e não uma abstração imaginária! De todo modo, considerar o “fato de que, nas ciências ambulantes ou nômades, a ciência não está destinada a tomar um poder e nem sequer um desenvolvimento autônomos” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.44).

Desse modo, nossa ciência funciona por alianças, uma vez que não pode resolver os problemas que inventa, pois seu interesse está em inventar outros problemas ali onde aquele parece se esgotar; precisa assim das ciências de estado, precisa, por consequência, da dimensão uma que colocamos em cheque: precisamos de uma dimensão ante-humano para essa Ciência da Imprevisão, mas avançamos ao humano, e aos artifícios da linguagem para tratar de soluções.

No campo da interação das duas ciências, as ciências ambulantes contentam-se em inventar problemas, cuja solução remeteria a todo um conjunto de atividades coletivas e não científicas, mas cuja solução científica depende, ao contrário, da ciência régia, e da maneira pela qual esta ciência de início transformou o problema, incluindo-o em seu aparelho teoremático e em sua organização do trabalho. Um pouco como a intuição e a inteligência segundo Bergson, onde só a inteligência possui os meios científicos para resolver formalmente os problemas que a intuição coloca, mas que esta se contentaria em confiar às atividades qualitativas de uma humanidade que seguisse a matéria… (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.45).

Você conhece minha relação com a docência e na articulação desta com a pesquisa: de considerar que, de certo modo, uma não se faz sem a outra — quer seja pela potencia presumida no seguir pesquisando matérias para o ensino, quer seja tomar o espaço de educação como uma aliança de pesquisas (o que me interessa sobre maneira) ou, no mínimo, que o docente que repete o que sabe, só pode porque outrora pesquisou. Digo isso para lembrar que, embora em busca de uma ciência, a questão centra que guia esta excursão está no entorno da Educação: ou seja, de instituir uma ciência na qual, por meio do estudo de um “objeto”, estude-se a si mesmo, pois destituído do lugar de sujeito do conhecimento, onde o eu passa a ser matéria também de estudo, de pesquisa — e por meio desta alquimia, numa mistura de elementos da ciência, filosofia e arte, se constitui os saberes.

A Ciência da Imprevisão, tendo em vista a pesquisa-docência, opera pela intuição, resiste, em princípio, aos artífices da inteligência, busca seguir as forças e se afectar por elas. Combate o humano em si, resiste a ele e, por meio dele, ao signo: não os nega, mas é ativo para com as forças, em detrimento das formas; é nômade, ambulante, itinerante, vagabundo. Na articulação desta intuição com a inteligência, nos translado (e no limiar sempre presente) do ante-humano ao humano, uma forma é dada ao material, uma matéria é composta com as coisas-fluxos: esse processo tenho chamado de Poéticas da Notação. Todavia, para essa poética deter força, o pesquisador-docente precisa primeiro da imprevisão experimental, para esquecer de si, se jogar na pesquisa, no labirinto, ludibriar as certezas, fissurar a logosfera, contornar o abismo, e entrelaçar, com as afecções desses processos a-significantes, numa transposição poética, sua matéria de estudo: que então é arquivada, organizada, ficando à postos para futuras composições inventivas.

Sobre essa maneira poética de lidar com os indícios coletados dos experimentos, com o que resta das experimentações extáticas do qual lhe falava, poderá avaliar por conta própria, num texto que produzi anteriormente.

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