SALA DE ESTUDOS

[107] 28/02/2019 – 01/03/2019

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PARA UMA CIÊNCIA

Se quer seguir-me, narro-lhe; não os resultados de uma pesquisa, que almejaria qualquer tipo de conclusão, mas a recorrente prospecção, mais forte do que eu, acerca de uma suposta ciência, a qual, por meio de experimentos, especulo por uma constituição possível. São, desde então, dezoito meses intensos — em verdade esta é a ponta de um iceberg, o topo de um período bem mais extenso da minha vida a especular no entorno desta ideia (ainda que, durante anos eu não estivesse consciente desta excursão).

Tal ideia, digo-te: a de que existe uma dimensão improvisada sob as aparências que constituem nossa vida. Desta suposição emerge uma inquietação da qual decorre minha obsessão: instituir uma ciência capaz de estudar esses processos imprevistos (não vistos à priori, para o quais, portanto, não temos a posse de referências consistentes, à não ser por transposições heterogêneas) e improváveis (pois, sem modelo e sem matriz de causa-efeito, que aqui não se aplica, nada se pode provar — no sentido de comprovação —, nos resta assim provar — no sentido de experimentar — e, por essa via, especular); a consequência disso seria que tal ciência demandaria um método extático, por assim dizer. Mas há um empecilho que tem me afligido, sempre que considero essa empreitada — e digo sem dó: o humano! Disso decorre um paradoxo: como posso eu, humanamente constituído, me agenciar com as tecnologias de uma ciência não-humana? O problema é mais complexo, você vê: a ciência é constituída humanamente, bem como nossos aparatos tecnológicos — ora, pois?

A questão então gira no entorno — ao menos minha prospecção chegou até aqui — não da negação do humanismo ocidental, sobre o qual se constitui a ciência, mas de criar condições para uma agência científica, digamos, ante-humana (e não anti-humana).

Mas veja onde me leva o ânimo… acabei por esquecer-me, num misto entre ansiedade, indignação e alegria, das anotações que deveriam guiar este relato (e devo logo alertá-lo que ele se constitui no ato mesmo da escrita, como dito entre um gole e outro de café, nas entrelinhas do olhar silencioso ante um transeunte que corta a paisagem ao acaso, tendo sempre a presença destas anotações em meu caderno azul, que miro vez ou outra para não encontrar-me demasiadamente perdido; anotações que não são nada mais do que intuições que por ora compartilho, com a esperança de que possa encontrar cumplicidade).

Passo, assim às anotações:

Primeiro, que estou especulando acerca de uma espécie de Ciência Nômade do Improviso. Segundo, que esta ideia ganha força junto as proposições do Tratado de Nomadologia, de Deleuze e Guattari — donde o fato de que qualquer semelhança não é mera coincidência; logo, não só os conceitos de Máquina de Guerra, Nômade e Ciência Menor são importantes, quanto outros que, mesmo que aqui não relatados, são imprescindíveis aos exercícios de pensamento nos quais estamos engajados; destaco os conceitos de devir, multiplicidade, heterogeneidade, pré-individual, ante-eu e a noção de corpo tomada na esteira do pensamento de Spinoza e Nietzsche.

Me permita, antes, mais uma reflexão (não quero denunciar lamúrias, mas intuo ser o contexto indispensável para percorrermos junto este relato — para estarmos ambientados, por assim dizer): nas tentativas fracassadas, sobre as quais esse relato colhe os resíduos, sempre que o ânimo me estimulava o pensamento, quando do encontro desta ideia — a de uma ciência, a partir dos conceitos filosóficos — eu me sentia, de contragolpe, paralisado, percebia nitidamente minha energia escoar para o espaço; logo, não queria escrever (não podia, não tinha forças!), sob o risco de humanizar, de dar um rosto para o que não tem, de dizer o mesmo de sempre em outras palavras de agora, de fazer um esboço sobre uma figura já dada, porém, esquecida. Além do mais, e peço que releve o tom confessional, não teria eu mais do que ínfimas improváveis chances de propor tal Ciência Nômade do Improviso: a matéria que detinha para compor era consideravelmente insuficiente para construir algo que parasse em pé (que dizer sobre caminhar… sobre dançar!); mas veja como me contradigo, pois, andar não seria uma coisa humana? E dançar? Ou, poderia haver (ou há?) uma ciência animal?

O fato é que eu não sabia o que fazer, só pensava, desejava, uma redução de pensamentos (do ponto de vista de uma racionalidade); supunha um pensar movido por tais infra improvisações da vida, das quais a forma é residual (e o humano é uma forma, apesar das replicações maneiristas). Noutros momentos, quando uma raiva de súbito me esquentava o sangue, queria, em vão, arrancar o humano de mim! No segundo seguinte, ponderava, racionalmente (veja a ironia!), se não seria o caso a própria dimensão humana desejando aniquilar-se, uma vez que o animal que por ventura habitasse em meu corpo, por suposição, se quer notaria essa abstração que é o humanismo).

Num dia, já exausto deste labirinto no qual titubeava entre me oferecer um mérito hercúleo, ou, uma ingenuidade infantil, encontrei um texto antigo que, de surpresa, me arrebatou mais uma vez: com ele, sobre uma espécie de transposição compositiva, ou conjunção disjuntiva, consegui, por fim, dar a ver ao menos um rascunho de mapa que, quiçá, poderá nos levar à um território no qual colheremos, em futuro próximo, a matéria necessária para modular essa ciência de fins práticos — para que ela desnude as coisas de todas as imagens que se projetam sobre elas, com tecnologias que nos possibilitem perceber, e com sorte compreender, as improvisações vitais das quais são feitas as coisas!

Trata-se do conto O espelho, de Guimarães Rosa. Narro-lhe, então, o que vem sendo motivo e ao mesmo tempo objeto da especulação. Faço-o pondo em jogo fragmentos de O espelho  e Tratado de Nomadologia: observe, contudo, que esses fragmentos, por mais estranho que possa parecer, são meus próprios pensamentos que só puderam ganhar forma no encontro com os textos, e se encaixaram perfeitamente nos excertos que, se naqueles corpos tinha uma sentido, aqui tomam outros — e, mais do que isso, são as próprias peças que possibilitam a maquinação do pensar, que não é, com efeito, de minha propriedade (nem as peças, nem a maquinação em si).

Pois bem, não me leve à mal, não é que me sinta incapaz, mas se é o caso de ser a vida que nos improvisa o tempo todo (se emergimos do Nada, por improvisações compositivas não-humanas, eis o ponto da minha interrogação), só nos cabe uma aliança coletiva, uma vez que, somente eventualmente na história, um ou outro de nós consegue olha para fora do palco no qual somos o teatro, e assim sacar, ou intuir, índices do modus operandis da dramaturgia por detrás das manifestações nas quais somos imagens, tanto quanto uma coisa detém as suas, e as palavras. Minha hipótese é, assim, mais impertinente, a de ao olhar para esse “fora” (que pode muito bem ser um dentro), nada veríamos que tivesse um rosto, se não uma maquinação regida pelo acaso, uma complexa articulação de micro-improvisações; mas feitas do que? De Nada?

A título de organização deste relato dividi tal prospecção em quatro pontos; após, deixo as consequência à você, cujo a correspondência espero possa lançar mais luz nesse breu (no qual pouco vejo, mas muito percebo; e, sem visão suficiente, pouco posso fazer com a claridade excessiva das palavras). Dos pontos, então: a questão, empecilhos à priori, experimentos, dificuldades encontradas, devaneios conclusivos.

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