SALA DE ESTUDOS

[63] 07/12/2017

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PARA CRIAR UM CORPO SEM ÓRGÃOS

As intensidades que constituem o CsO são tamanhas que expulsam todo e qualquer significado fazendo do corpo um lugar de passagem. Resta sempre o vazio a ser preenchido. Se é possível falar em falta em relação ao CsO trata-se de uma falta fundamental que designa a incompletude, o ser inacabado, o processo constante de construção de modos de subjetivação. E se é possível falar em perda, isto se dá no sentido de um esquecimento do próprio Eu; ou seja, de uma forma de dessubjetivação. Por isso é impoder e não impotência. O impoder é a potência de romper com os poderes constituídos; é a própria recusa do julgamento de Deus. […] Por isso ele é sequer um conceito, mas uma prática, um exercício, uma experimentação da própria vida em sua potência criativa. (SALES, 2014, p.5).

Retornamos ao Corpo sem Órgãos e com ele, ao Corpo Potencial. Chegamos a afirmar, no início desta pesquisa-texto[link e de lá pra cá], que o Corpo Potencial seria equivalente ao CsO, mas não é disso que se trata. Se há equivalência, ela se dá nos movimentos que o Corpo Potencial pretende possibilitar: dos fluxos, da dessubjetivação, para que o corpo seja um lugar de passagem, um lugar de impoder, e pleno de potência. Criar um corpo sem órgãos é uma questão vital, das qualidades da vida que se vive, de suas intensidades. Criar um CsO é uma prática, uma fazer(se) cotidiano.

Criar um CsO é uma função do Corpo Potencial e aqui, após termos tentado esboçar do que trata esse Corpo, desdobraremos a questão pensando os modos de possibilitar que se mova esse CsO, que sempre está aí, apesar dos estratos que restringem seus fluxos. É uma questão de experimentação, uma questão de autoexperimentação. O Corpo Potencial joga com os estratos e, em procedimentos inventados (exercícios e jogos) que restringem para produzir desvios, desequilibra o sujeito, e dança consigo, com o si (link pra o si em Nietzsche) “Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.11).

Desde a primeira leitura desta citação, no ano de 2007, nos sentimos tomados por uma sensação de que fomos convidados para uma batalha: Encontre! É uma questão de vida ou morte! É aí que tudo se decide! Pensamos que para isso precisaríamos mobilizar forças, e que não seria possível lutar a partir do sujeito professor, sujeito artista, sujeito pesquisador. Se é contra essas subjetivações que lutamos, contra o organismo, é também com e através dele. Esse contra, paradoxalmente, é um junto (e por isso afirmamos que esse combate se confunde como uma dança). Se não restasse nada dos estratos teríamos fluxos informes, um mergulho no caos, na loucura… É preciso prudência:

É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação, é também necessário conservar, inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam; e pequenas rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para poder responder a realidade dominante. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.11).

Aceitamos o convite, o desafio, a intimação que sentimos nesse ato político-estético que é fazer seu CsO. Preparamos nossas armas, criamos estratégias, treinamos, exercitamos… mas quem é esse que cria, que treina, que exercita? Não pode ser o CsO, pois sem um organismo não resta uma terra sobre a qual organizar, planejar, treinar: faltaria um território de jogo. É então o sujeito? Seria arriscado demais querer que o próprio Eu [nota para citação de larrosa e estar contra sujeito], por demais centrado e convicto de suas verdades, imerso em suas próprias ilusões, aceitaria as pequenas doses de suicídio necessárias à produção do CsO. E ainda, ao lermos em Deleuze e Guattari “é necessário guardar o suficiente de organismo” percebemos que eles falam a um terceiro, nem ao eu-sujeito que precisa perder um tanto de si para que reste esse suficiente, nem ao CsO que não fala essa língua, já que a língua é uma organização. E assumimos aqui a singularidade da nossa leitura para o que nos interessa, e sobre o qual pretendemos falar mais a frente com a vontade de apropriação em Nietzsche, como substituto da vontade de conhecimento[link]. Então, embora, talvez, não estivesse explícito, eles falavam a um terceiro corpo. Que cada um crie então esse corpo que fabrica [link para a ideia de mito], que estuda, que pensa, que faz, que produz um CsO, partindo dos estratos, da linguagem, dos órgãos, dos gestos, dos sentidos. Nós estamos a criar um Corpo Potencial.

É esse Corpo Potencial, uma variação sobre o corpo, que eventualmente poderemos definir como CorPo, que se autoexperimenta, que joga com e sobre os estratos, embaralha os códigos, mas cuidando[1] para que sempre reste um pouco de terra, de manter o que de potente há nos estratos. São as forças apolíneas que possibilitam as harmonia e a beleza para que se queira seguir vivendo, mas sustentando as forças dionisíacas nesse viver[link]. Cientes dos paradoxos, da ausência de sentido, do acaso, da incerteza, e do esquecimento. Mas sempre reorganizando esse corpo, tonificando suas pernas para a caminhada, ampliando seu olhar e sua potência de visualizar os detalhes, desenvolvendo as habilidades dos membros superiores de pegar e soltar, e a sensibilidade para o que não se pode ver: “Não digo sabedoria, mas prudência como dose, como regra imanente à experimentação; injeções de prudência” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.11).

Não se trata de constituir a si mesmo como sujeito; mas, ao contrário, no sentido de esvaziar enquanto tal, ou seja, se dessubjetivar. Isto porque a noção de subjetividade ou ponto de subjetivação remete a uma estratificação da experiência de si mesmo; […] Em todo caso, há uma batalha de forças que é travada o tempo todo e põe em risco a própria existência. Por um lado, a estratificação que cria significâncias e subjetivações através de um jogo de poder; do outro lado, a linha de fuga que tudo desterritorializa podendo arrastar o indivíduo para uma espécie de buraco negro. É aí então que surge a necessidade do governo de si. Mas não no sentido de um sujeito soberano capaz de fundar a si mesmo; mas de uma maneira de assumir-se como processo. Criar para si um CsO que seja mediado não por uma consciência soberana, mas por uma experimentação continua que permita a vida fluir em sua criatividade. Permitir que os fluxos, as intensidades passem ao invés de serem bloqueados. (SALES, 2014, p.9).

O CorPo é um autoexperimentador. O CorPo “governa a si”. E antes mesmo de criar jogos, entende que está em jogo. Entende que está sempre sendo capturado por uma (in)visível malha de poderes que se inscreve sobre seu corpo subjetivado. O CorPo resiste, cria seus próprios jogos, produz variações de si. Entende que não somos indivíduos, mas divíduos, e multiplica essas divisões. É sempre possível ser um outro nesse jogo, se por máscaras, ou tirá-las, e se desconhecer.

Ele é um mediador, um facilitador, um provocador, um compositor, um jogador, um juiz, artista, um professor. Um si que joga consigo, entendendo esse jogo como experimentos auto-impostos para os desvios necessários à vitalidade, para que os fluxos e intensidades passem. E são esses momentos intensivos de desvios criativos onde o ser se perde nos próprios movimentos, mas neste interim algo capta, nota, e anota em sua existência (e compõe com seu corpo), que estamos definindo como improvisação.

O CorPo usa o par risco-prudência, numa autoexperimentação constante, que vitaliza a vida, que potencializa a educação. Uma educação que é explorada aqui como um espaço de autoexperimentação coletiva e compartilhada, através do jogo, onde tanto as regras produzem restrições, quanto a minha relação com os outros, incluindo o currículo como esse outro – intentando que essas restrições possibilitem novos caminhos e novos caminhantes.

Então, ao retomar nossa ideia de um Corpo Potencial, sendo esse que se experimenta através de exercícios que aqui abordamos, sobretudo, sobre a ideia de jogo, retornamos também a essa concepção de jogo que produz variação a partir do que temos de dizível e visível [talvez nota para Foucault de Deleuze]. Com os estratos que definem as instituições e os sujeitos. Não nos precipitamos numa queda acelerada em direção ao CsO, se é que isso é possível, mas nos experimentamos a partir desses estratos e em jogos que se confundem com danças e combates nos (des)equilibramos e produzimos linhas de fuga em direção a outras terras; carne e terra.

Instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmentos por segmento dos contínuos de intensidade, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.13).

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[1] “Como criar para si um CsO sem que seja o CsO canceroso de um fascista em nós, ou o CsO vazio de um drogado, de um paranoico ou de um hipocondríaco?” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.11).

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