SALA DE ESTUDOS

[65] 07/12/2017

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Notas que apontam para esta: [15] 

 

Nietzsche escreve que a moral pressupõe a capacidade de autodividir-se. Algo dentro de nós da ordens a outro Algo dentro de nós. Existe a consciência de um eterno comentar-se e autovalorar-se. E, todavia, uma poderosa tradição insiste em falar de “indivíduo”, ou seja, do núcleo indivisível do ser humano. (SAFRANSKI, 1998, p.83. TRADUÇÃO NOSSA).

O ensaísmo como forma de vida, um eterno ensaiar. Um criar condições, cenários, peças para composições, um jogo inventivo: performar a própria vida. Um eterno ensaiar, pois não se pretende apresentar numa dado final um Grande Espetáculo, mas cenas cotidianas que encontram potência tanto em ações virtuosas, quanto em pequenos gestos afetivos, quanto nos erros incluídos na cota dos desvios vitais. É sempre um ensaio, espaço de experimentação. E o corpo como espaço, tanto quanto a vida, e essa em aula, em texto, em variações.

Essa ensaiar se dá como um jogo no pensamento que se projeta nos modos de vida e nas ações cotidianas.

A Nietzsche não é suficiente produzir frases dignas de serem citadas, o que ele quer é dispor sua vida de maneira que lhe sirva como antecedente citável de seu pensamento. Não lhe serve meditar sobre sua vida. Isso faz qualquer um. Ele quer viver uma vida de tal modo que lhe de o que pensar. A vida como disposição experimental para pensar; o ensaismo como forma de vida. (SAFRANSKI, 1998, p.85. TRADUÇÃO NOSSA).

É importante reforçar, ainda que já afirmado em outros fragmentos, que se trata de um ensaio e uma fé, uma crença, no terreno, na vida cotidiana, e no plano de imanência.

Nietzsche quer uma intensidade aumentada; não quer o grande desengano, se não a santificação da vida térrea. Neste ponto se diferencia seu ateísmo do niilismo moderno. O niilismo moderno é, segundo ele vê, mero desengano. O Zaratustra de Nietzsche, pelo contrário, quer instruir a arte de como se ganha quando se perde. Todo êxtase, toda beatitude, todas ascensões do sentir, essa fome de intensidades que em outra época se encontrava Mais Lá, tudo isso deverá sucessivamente se concernir a vida imediata e do Mais Aqui terreno. (SAFRANSKI, 1998, p.91. TRADUÇÃO NOSSA).

Então, trata-se de um se abrir para esse jogo, jogo do mundo, jogo do acaso [link]. E de produzir variações nesse jogo, transgredindo, através da autoexperimentação e a partir de jogos “menores”[link]. E da repetição deste jogo, e da variação e produção de outros jogos, num movimento circular do tempo – neste labirinto que retorna para os mesmos lugares:

Com o intuito de resolver a ideia do efeito circular do tempo como uma carga paralisante, Nietzsche intenta pensa-la em conjunto com a imagem do grande jogo do mundo. Como se sabe, também o jogo se baseia em repetições, mas a vivenciamos com prazer. Com a morte de Deus se faz evidente, para Nietzsche, a proeza e o caráter lúdico da existência humana. O Homem Superior é aquele que tem a força e a facilidade para abrir-se para este jogo do mundo. O transcender de Nietzsche se move nesse sentido: faça-se o jogo, enquanto fundamento do ser. O Zaratustra de Nietzsche dança quando encontra esse fundamento, dança igual Siva, o deus dos mundos da Índia. (SAFRANSKI, 1998, p.92. TRADUÇÃO NOSSA).

Aqui, avançamos no que vai nos levar, num próximo fragmento, ao livro de Nietzsche, O Nascimento da Tragédia[link].

Estamos em jogo com diversas forças, neste grande jogo do mundo: uma multiplicidade de singularidades passam e nos afetam, ou não. A existência assim se apresenta em movimentos complexos para os quais as definições não são mais que tentativa de diminuição dessas velocidades, um corte, um crivo no caos. Encontramos assim (inventamos) padrões: é como inventar as peças desse jogo, nomeando-as, para que assim possamos definir nosso território de jogo, e possamos jogar. Dualismos assim passam a ser pontos de ancoragem para dimensionar as modulações energéticas e a estratificação da matéria em regimes de saber (vizibilidade) e de poder (dizibilidade)[criar nota a partir do Foucault de Deleuze). Nesse sentido, encontramos na filosofia de Nietzsche pontos de ancoragem para essas forças, para pensar seus efeitos nos corpos, para pensar, assim, a Educação:

Apolo é o deus da forma, da claridade, do contorno nítido, do sonho iluminado e, sobretudo, da individualidade e da razão. […] Dioniso, por sua vez, é o selvagem deus da embriaguez, do sentimento, do desmedido e da vertigem coletiva. Todavia, ambos aspectos – o dionisíaco e o apolíneo – constituem respostas frente as potências elementares da vida. […] Ainda que Nietzsche comece analisando princípios estéticos, logo se torna evidente que a obra é uma investigação metafísica das condições básicas do ser humano. Dioniso e Apolo significam a oposição entre sentimento e razão, vontade e representação, coletividade e individualidade. (SAFRANSKI, 1998, p.94. TRADUÇÃO NOSSA).

Aproximamos assim o elemento dionisíaco ao Corpo sem órgãos de Artaud, conforme apresentado em seu texto-manifesto “Como acabar com o Juízo de Deus”, do qual destaco a parte final:

Quando tiverem consegui um corpo sem órgão, então o terão libertado de seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade. Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas como no delírio dos bailes populares e esse avesso será seu lugar verdadeiro. (DELEUZE; GUATTARI Apud SALLES, 2014, p.2).

“No princípio de Dioniso, Nietzsche abarca aquela vida que ele pode intuir dentro de si e que ao mesmo tempo lhe falta, essa vida que ele, portanto, deverá buscar e inventar” (SAFRANSKI, ANO, p.94. TRADUÇÃO NOSSA). Aqui um ponto central da pesquisa-texto que estamos desdobrando: a busca por algo que se intui, mas não se conhece, não se sabe, embora se saiba, em certa medida, que exista enquanto possibilidade (outros diriam como essência). E assim a escrita se apresenta como um exercício de encontros, tentativa, sempre levada adiante, de encontrar algo de si. E aqui nos remetemos a Perec, em seu texto Notas sobre o que busco:

Nunca resolvi como falar de meu trabalho de maneira abstrata e teórica; ainda que o que produzo pareça originar-se em um programa elaborado tempos atrás, em um projeto de longa data, creio que meu movimento se encontra – e se demonstra – andando: da sucessão de meus livros nasce para mim a sensação, as vezes confortante, as vezes perturbadora (pois sempre depende de um “livro que venha”, de uma inconclusão que designa o indizível sobre o qual tenho desesperadamente o desejo de escrever), de que recorrem um caminho, sinalizam um espaço, um itinerário vacilante, descrevem um passo a passo das etapas de uma busca cujo “porque” não sei explicar. […] Um “porque escrevo” ao qual só posso responder escrevendo. (PEREC, 1986, p.13. TRADUÇÃO NOSSA).

Adiante, o escrever sobre, que é um pensar sobre esse algo, que é um pensar o pensamento, que é um pensar a si, e ao pensar a si um pensar o ser, e ao pensar o ser um escrever sobre educação. Aí novamente Nietzsche nos apresenta uma perspectiva deste buscar que não se justifica por algo a ser desvelado, questão enfatiza por Foucault [nota sobre não haver nada sobre a cortina no Foucault de Deleuze]. Temos aí uma relação ambígua com as aparências, e nela com as forças apolíneas.

Devemos ser exatos: o psicólogo Nietzsche não reprova a aparência como tal, se não a falsa fé que se deposita na aparência. Condena que se oculte detrás do caráter aparente. Condena aquele autoengano através do qual, para poder crer nos valores que se tenha construído para si, os consagra e idealiza como se fossem valores e verdades absolutas. […] O dionisíaco Nietzsche insiste no direito a vida, e na riqueza vital que tem a aparência, mas sem autoenganar-se. (SAFRANSKI, 1998, p.97. TRADUÇÃO NOSSA).

Se o mundo enquanto fenômeno é percebido enquanto aparência, nos efeitos que produz, cabe a nós jogar com essas aparências, no sentido do que com elas podemos compor, e nisso compor a nossa realidade. Realidade que, portanto, é sempre uma ficção.

Se deve amar a aparência pela aparência mesma. Nada que objetar a um ator, mas não se deve esquecer que se é um ator. Nada que objetar a vaidosa fantasia, mas deve se seguir sendo soberano sobre a própria força fantasiosa, não se deve tentar desaparecer entre as imagens que criou. […] A soberania dionisíaca surge quando se assume a vontade de engano. (SAFRANSKI, 1998, Idem – 97. TRADUÇÃO NOSSA).

Essa afirmação reforça os contornos do estudo no qual esta pesquisa-texto se desdobra: a ideia de autoexperimentação que aqui apresentamos também pode ser entendida como autoficção. Isso porque esta experimentação não objetifica o mundo, não se trata de um ser consciente agindo sobre um objeto cognoscente. Não há, a priori, sujeito e objeto. Tudo é aparência. A fé no engano se apresenta neste estudo como uma fé na possibilidade de estabelecer uma poética da existência, uma vez que a realidade é, nesse sentido, uma ficção – tanto quanto uma ficção produz sua realidade. Na construção de uma narrativa desenhamos nossa realidade a partir dos efeitos da aparência do mundo, do que nele nos afeta.

Pois bem, e se a realidade não está nem no objeto, nem no sujeito, talvez então se encontre na relação entre ambos? Na bipolaridade? No predicado que une sujeito e objeto? Tanto sujeito como objeto são ficções, de acordo. Mas a realidade está na relação entre ambos. O conhecedor e o conhecido são ficções, de acordo. Mas o conhecimento é realidade. O vivo e o vivido são ficções, de acordo. Mas a vivência é realidade. Muito bem, mas se há tantas relações quanto pontos de vista? Se a mesa é conhecimento meu enquanto tábua solida e campo vazio? Ambos os conhecimentos são realidade. São ontologicamente equivalentes. E esta admissão significa, no fundo, a admissão de que realidade é ficção, e ficção é realidade. (FLUSSER, 2006, p.2).

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