SALA DE ESTUDOS

[68] 12/12/2017

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Nos caminhos desta pesquisa-texto que se autoexperimenta ao inventar(se) nos encontramos com Nietzsche. Nesta sala de estar, juntos, estão Apolo e Dioniso. Um novo jogo se inicia, portanto, mas que não deixa de ser uma nova linha desdobrada dos pensamentos anteriores – da autoexperimentação, da criação de mitos, das ficções. Sempre o jogo no pensamento, um certo diálogo entre vários e que se apresenta em texto. Nesse sentido, trazemos uma citação do início do livro O Nascimento da Tragédia, de fragmentos sobre o título de Ensaio de Autocrítica:

Estruturado puramente a partir de vivências próprias, prematuras e excessivamente verdes, todas elas situadas muito perto do limiar do comunicável, colocadas no solo da arte – porque o problema da ciência não pode ser conhecido no solo da ciência -, um livro talvez para artistas com um complemento de capacidades analíticas e retrospectivas (ou seja, para uma espécie excepcional de artistas que têm de ser procurados e que gostaríamos de nem procurar…), plenos de inovação psicológicas e dons ocultos de artista, com um fundo de metafísica de artista, uma obra de juventude plena de alento e desalento, […] em suma, uma obra de principiante, mesmo nesse mau sentido da palavra, presa a todos os problemas da juventude, apesar de seu problema de avançada idade. (NIETZSCHE, 2005, p.9).

Nietzsche nos apresenta esse reencontro consigo, sobre o qual faz sua autocrítica. A nós interessa esse movimento de releitura, no qual se encontra, talvez, as sementes do que mais tarde veio a florescer, e para o qual não se mensurava os frutos. Ou seja, os problemas da existência, e junto aquele outro eu que se intui e sobre o qual não se pode conhecer – nem antes nem agora, apesar da maior proximidade no presente. Para Nietzsche, a força que Dioniso teve para seu pensamento, e a estranheza da releitura desse outro, tão próximo e tão distante.

Um livro comprovado, quero dizer um livro que em todo o caso satisfez “os melhores da sua época”. Já por causa disso ele deveria ser tratado com alguma consideração e algum silêncio; apesar disso, não quero calar totalmente quão desagradável é o modo como ele me surge agora, quão estranha é a forma como se encontra diante de mim, dezesseis anos depois – diante de um olhar mais idoso, cem vezes mais mal-habituado, mas de modo algum mais frio e que tampouco se tornou mais estranho, mesmo à tarefa que aquele livro temerário ousou pela primeira vez empreender – ver a ciência sobre a ótica do artista, a arte, porém, sob a da vida… (NIETZSCHE, 2005, p.10).

Com Nietzsche, reafirmamos o intento da pesquisa que inventa e que tem no texto o instrumento (e ao mesmo tempo a matéria) sobre o qual modula a energia e constitui a realidade. Nietzsche, conforme afirmou SAFRANSKI [link] , fez da sua existência, através da filosofia, e essa como pensamento e texto, uma autoeperimentação. Procedimentos que aqui buscamos, ao tentar fazer da/na pesquisa o “objeto” sobre o qual pesquisamos, qual seja: o Corpo Potencial como autoexperimentador (e autoficionador) em pesquisa que inventa suas matérias-peças e com elas compõem num pesquisa-invenção. O CorPo que ensaio, um texto que ensaia, numa vida que se apresenta enquanto aparência – e aí nossa sala de estar se transforma num palco e, ao mesmo tempo, numa sala de jogos – e ambos numa sala de aula!

No próprio livro surge repetidamente a ousada proposição segundo a qual só como fenômeno estético se vê legitimada a existência do mundo. Com efeito, todo o livro conhece apenas um sentido próprio e oculto de artista por detrás de tudo o que acontece – um “deus” se quiser, mas decerto apenas um deus de artista, totalmente irrefletido e imoral, pretendendo comprenetrar-se do seu prazer e de sua autoglorificação imediatos tanto no ato de construir como no de destruir, no bem e no mal, libertando-se ao criar mundos da necessidade da abundância e sobreabundância do sofrimento das oposições que lhe são impostas. (NIETZSCHE, 2005,p.13).

Mesmo do sofrimento, mesmo com as oposições que nos são impostas, das escolhas inerentes ao viver. Com elas, dançar aos pés do acaso [link], brincar, jogar. Com elas errar. Com as oposições apresentadas através dos mitos Apolo e Dioniso, mas não só. Oposições e restrições que a linguagem nos apresenta – ele ou ela, claro ou escuro-, onde nem sempre variações de tons são possíveis, mas podem ser inventados, por isso um trabalho de artista. Nisso perspectivamos nossa vida, numa existência que não se pauta por nenhum fim, irrefletida, onde o erro ganha outro sentido; e onde o sentido é sempre (re)inventado nas composições do qual é efeito.

Uma filosofia que ousa colocar a própria moral do mundo no fenômeno, fazendo-a descer não apenas para o meio dos “fenômenos” (no sentido terminus technicus idealista) mas para o meio das “ilusões”, enquanto aparência, alucinação, erro, interpretação, arranjo, arte. […]  Pois toda a vida assenta na aparência, arte, ilusão, ótica, necessidade do perspectivismo e do erro. (NIETZSCHE, 2005,p.14).

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