SALA DE ESTUDOS

[69] 12/12/2017

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Então nos lançamentos num estudo com Nietzsche, Apolo e Dioniso. Podemos definir dois pontos que nos interessam (enquanto uma definição que ancora o pesquisar) a partir deste estudo: a relação entre esses deuses da mitologia com a individuação e a manifestação destes enquanto forças na constituição das instituições. Ambos estão relacionados, assim que podemos afirmar que são as instituições que definem os sujeitos; mas uma separação é não somente didática, mas se ampara na intuição de que esses processos, embora imbricados, se dão em dimensões paralelas: uma no âmbito “bio-psicológico” e outro num âmbito socioeconômico. Talvez possamos referendar aqui Guattari, e suas três ecologias, aonde nos apoiamos então na ideia de ecologia individual e ecologia social. Começamos então pelo primeiro ponto:

Poderia mesmo dizer-se de Apolo que a confiança inabalada naquele principium e a tranquila postura sentada de quem nele se encontra cativo recebeu nele a sua mais sublime expressão, e desejaríamos mesmo designar Apolo como sendo a magnífica imagem divina do principium individuationis, de cujos gestos e olhares nos falaria todo o prazer e sabedoria da “aparência”, juntamente com sua beleza.[…] Na mesma quebra do principium individuationis,  se ergue a partir do fundamento mais íntimo do ser humano e até da natureza, estaremos por lançar um olhar para a essência do elemento dionisíaco, que nos ainda é dada do modo mais aproximado pela analogia do êxtase, […] que penetra plena de prazer na natureza, despertam aquelas agitações dionisíacas, em cujo progresso desaparece o que é subjetivo, até atingir um pleno esquecimento de si próprio.  (NIETZSCHE, 2005, p.27).

Nos interessa aqui esse jogo entre essas forças, esse jogo no qual nos inserimos, enquanto educadores, enquanto sujeitos, e enquanto corpos em jogo com outros corpos. Onde é preciso, e inevitável, modelar, significar, individuar. Mas essa organização surge como um meio, um modo de operar a vida. Onde o problema, enquanto redução da vitalidade dos corpos, está na molaridade que essa organização instaura, na estrutura por demais pesada e que, de antemão, afirma uma realidade e nela insere os corpos em subjetivação. As instituições surgem dos instintos[ver em Deleuze a ilha deserta], de uma solução para um problema, mas acaba por se afirmar anterior aos próprio problemas, enquanto acontecimento histórico, numa narrativa teleológica. Apolo dominando o jogo, quando a ilusão se afirma como realidade, mas uma ilusão na qual não nos percebemos. Nos cabe perceber esse princípio de individuação, de organização e, através da autoexperimentação modular as energias em encontro com as forças dionisíacas, produzindo fissuras, para movimento moleculares, para criar seu CsO [link para fragmento anterior nessa nota]. É um movimento de artista, onde também se é uma obra sobre a qual se trabalha.

O ser humano já não é artista, tornou-se obra de arte: o poder artístico da natureza inteira, para satisfação voluptuosa do Uno originário, revela-se aqui sobre os arrepios do êxtase. A mais nobre argila, o mais precioso mármore é aqui modelado e golpeado, o ser humano, e aos toques de cinzel do artista dionisíaco. (NIETZSCHE, 2005, p.29).

E ainda, na mesma página, afirmação que nos interessa, no sentido de não opor essas forças, embora opostas em seus simbolismos, mas como ambas sendo constituintes do ser humano, e da vida, onde se misturam e se compõem.

Face a essas situações artísticas imediatas da natureza, todo o artista é um “imitador”, nomeadamente artista apolíneo do sonho ou artista dionisíaco do êxtase ou finalmente – como por exemplo na tragédia grega – em simultâneo, artista do êxtase e do sonho: assim temos de pensa-lo, tal como ele se prostra na embriaguez dionisíaca e alienação de si próprio, solitário e longe dos coros exaltados, e tal como se lhe revela então, pela ação apolínea do sonho, o seu próprio estado, isto é, a sua unidade como fundamento mais íntimo do mundo numa imagem onírica e simbólica. (NIETZSCHE, 2005, p.29).

Nietzsche segue, nas páginas seguintes, afirmando que é necessário entender essa força por si mesma, perceber-se na prisão em que esses símbolos nos insere e, compreendendo-os, poder expressar outros modos de vida, incluindo aí criar seus próprios mitos. E onde Nietzsche questiona as necessidades que fizeram com que os gregos criassem um ideal olímpico, podemos estender à nossas instituições. Ademais, o próprio ideal olímpico, no que tange produtividade, eficiência, virtuose, sucesso, etc, se reproduz nos discursos atuais, quer seja no se refere a saúde [link para texto que fala dos troféus, esporte], profissão, mercado de bens, etc. As ilusões apolíneas dominando o jogo – ou querendo dominá-lo.

A fim de captar essa prisão total de todas as forças simbólicas, o ser humano precisa já ter alcançado aquele nível de autodespojamento que se quer expressar simbolicamente naquelas forças. […] Para compreender isto, temos de desmontar aquele artificioso edifício da cultura apolínea, por assim dizer, pedra por pedra, até vislumbrarmos os fundamentos sobre os quais ela assenta. […] O mesmo impulso que se materializou em Apolo deu, aliás, vida a todo aquele mundo olímpico, e nesse sentido podemos considerar Apolo como pai do mesmo. Qual era a enorme necessidade da qual brotou uma sociedade tão fulgurante de deuses olímpicos? (NIETZSCHE, 2005, p.34).

Esse ideal olímpico e seu desdobramento num mundo de imagens onde impera uma certa definição do que é belo, do forte, do vitorioso e esplêndido. Uma sociedade que transforma jogo em esporte, que associa o jogo ao lazer, o lazer à brincadeira, e à essa opõe a seriedade e a nobreza do trabalho, e ao trabalho associa tudo que é produtivo, e ao que é produtivo o que produz bens e à isso o mercado de consumo de bens e, à esses bens se associa a ideia de conquista de poder, força, beleza. Toda uma maquinaria capitalista, todo um jogo que divide o acaso para dominá-lo [link]. Uma luta homérica que se opõe ao sofrimento, negando esta força da vida que se associa a morte, ao erro, ao frágil – e que aí, com Dioniso, justamente encontra sua força.

A “ingenuidade” homérica deve apenas ser entendida como a vitória completa da ilusão apolínea: trata-se de uma ilusão como a que é tantas vezes utilizada pela natureza a fim de atingir seus propósitos. […] Nos gregos a “vontade” queria contemplar-se a si própria, através da transfiguração do gênio e do mundo da arte; […] Essa é a esfera da beleza na qual eles viam  suas imagens refletidas ao espelho, as figuras olímpicas. Com esse reflexo de beleza, a vontade helênica lutava contra o talento para o sofrimento e para a sabedoria no sofrer, talento esse correlativo ao artístico: e como um monumento da sua vitória está Homero diante de nós, o artista ingênuo. (NIETZSCHE, 2005, p.37-39).

Homero, esse mito que nos reapresenta essa força que nos capta, a força do discurso, a força das instituições. Esse artista ingênuo. Novamente, nada o que objetar a um artista, mas não esquecer de que somos um artista. Safredi (de nietzzhe, ver, talvez linkar).

É interessante como Nietzsche vai desenvolvendo seu pensamento e nos apresenta com um certo deslumbramento, ou uma curiosidade e ânimo de quem encontra nesses mitos uma perspectiva da realidade, com a qual virá a desdobrar sua filosofia.

Quanto mais me dou conta, nomeadamente na natureza, daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparência, de serem redimidos por meio da aparência, tanto mais me sinto compulsionado a adotar a hipótese metafísica de que o Ser verdadeiro e o Uno primordial, enquanto entidade eternamente sofredora e contraditória, necessita simultaneamente, para a sua permanente redenção, da sedutora visão, da deleitosa aparência: essa mesma aparência que nós, completamente presos nela e por ela constituídos, nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro não-ser, isto é, um constante devir em tempo, espaço e causalidade, por outras palavras, realidade empírica. […] A “aparência” é aqui reflexo do eterno desacordo, o pai das coisas. Dessa aparência ergue-se então, como um aroma ambrosino, um novo mundo aparente igual a uma visão, do qual os que se encontram presos à primeira aparência nada vêem – um pairar luminoso no puro deleite e contemplação indolorosa, que brilha a partir de olhares distantes. Temos aqui diante de nossos olhos, numa suprema simbologia artística, aquele mundo apolíneo de beleza e seu subsolo, a terrível sabedoria de Sileno, e entendemos a sua mútua necessidade. (NIETZSCHE, 2005, p.39-40).

Temos aqui, misturados, dois movimentos que nos interessam: essa imagem do solo e subsolo, mas que preferimos pensar como múltiplas camadas, que se permutam e se atravessam, num plano de imanência. Não tendo assim um solo que precisa ser escavado e descoberto, mas fissuras que precisam ser realizadas para o que está abaixo possa emergir acima, ou o que está acima possa emergir abaixo, ou o que está a frente possa emergir à vista – como a fissurar um muro que impede de ver uma paisagem possível, e seus movimentos improváveis.

O segundo ponto é o próprio texto como esse que se apresenta como um diálogo, tal como nos afirma Borges [ver em Adó, citado em outra nota, livro como diálogo], ou como podemos pensar com Valery (link para fragmento de colóquio dentro do ser, mas talvez esse não exista, foi usado num trabalho de seminário). Nietzsche segue num movimento de repetição sobre as forças Apolíneas e Dionisíacas, e sobre esse tema varia. Sentimos como um diálogo consigo, nesse movimento que nos interessa, de quem vaguei por um itinerário incerto, do qual nos fala Perec (citar fragmento anterior). É sobre esse texto que opera com e a partir do pensamento, e um pensamento como um pesquisar, e esse pesquisar como um encontrar, e esse encontrar como um inventar. No caso de Nietzsche, inventando, e derrubando, mitos. Assim, partimos para os últimos momentos desse diálogo do qual participamos, como leitores, criando nossos próprios diálogos, como efeito da leitura, e transcriando-os neste texto-pesquisa.

Ambos justificam através deste jogo a existência até do “pior dos mundos”. Aqui se revela o elemento dionisíaco, comparado com o apolíneo, como sendo o poder artístico eterno e originário, que chama à existência todo o mundo do fenômeno: no seu centro, torna-se necessária uma nova aparência transfiguradora para aprender à vida o mundo animado da individuação. Se pudéssemos imaginar um devir humano em dissonância – e o que é o ser humano senão isso? -, tal dissonância, para poder viver, necessitaria de uma magnífica ilusão que cobrisse com um véu de beleza o seu próprio ser. Esta é a verdadeira intenção de Apolo: em seu nome resumimos todas aquelas inúmeras ilusões da bela aparência, que tornam a existência em cada instante digna de ser vivida, incitando a viver o momento próximo. (NIETZSCHE, 2005, p. 173).

O Corpo Potencial se afirma nessa dissonância, que opera entra a individuação, com as forças apolíneas, e as fissuras, os delírios, com o trágico dionisíaco. Afirmada assim a importância de Apolo, seguimos e findamos esse fragmento com a reafirmação deste jogo entre as forças que compõe o sujeito, com Apolo, e os fluxos num plano de imanência, que pode ser pensado num CsO, com as forças dionisíacas. E da importância de se perceber neste jogo para, a partir daí, passar a jogar criando seus próprios jogos.

Daquele fundamento de toda a existência, o subsolo dionisíaco do mundo, só pode chegar a consciência do indivíduo humano exatamente tanto quanto puder ser superado por aquela força apolínea de transfiguração, de tal modo que esses dois impulsos artísticos são obrigados a desenvolver as suas forças numa proporção de rigorosa alternância, de acordo com a lei da eterna justiça. Onde os poderes dionisíacos se erguem de forma impetuosa, como presenciamos, já Apolo deverá ter nascido até nós, envolvido numa nuvem; os seus mais exuberantes efeitos de beleza serão contemplados por uma próxima geração.  (NIETZSCHE, 2005, p.174).

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