SALA DE ESTUDOS

[77] 22/01/2018

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Aqui estamos então, e damos a ver ao texto, possivelmente, caso caia aos olhos do leitor, nós mesmos. Estamos sempre em jogo e aqui, damos a ver outro jogo – provavelmente um jogo que estamos a jogar desde o início desta pesquisa, mas que somente agora ganha forma o suficiente para que sobre ele se escreva. Trata-se da relação entre o desaparecimento do autor, passando a ser um corpo no qual a linguagem se registra, como veremos com Barthes, ou a partir da função-autor, com Foucault. No outro lado desta questão está o lugar de fala, um certo ser identitário que escreve, que vive em condições específicas, que se localiza ante um ethos social. Adentramos a questão então, abrindo um novo caminho, com as seguintes palavras:

A auto-ficção é uma máquina produtora de mitos do escritor, que funciona tanto nas passagens em que se relatam vivências do narrador quanto naqueles momentos da narrativa em que o autor introduz no relato uma referência à própria escrita, ou seja, a perguntar pelo lugar de fala (O que é ser escritor? Como é o processo de escrita? Quem diz eu?). Reconhecer que a matéria da auto-ficção não é a biografia mesma e sim o mito do escritor, nos permite chegar próximos da definição que interessa para nossa argumentação. Qual a relação do mito com a auto-ficção? O mito, diz Barthes, “não é uma mentira, nem uma confissão: é uma inflexão”. “O mito é um valor, não tem a verdade como sanção”. (KLINGER, ano, p.55).

Deslocando um pouco a via afirmamos que é necessário reconhecer que a matéria da pesquisa – e essa entendida como ficção (desdobrada por vezes em autoficção)- não é a realidade, e sim o mito do pesquisador. O mito do pesquisador que coleta os dados da realidade e que nos apresenta uma descoberta científica. Não há o que ser descoberto [link para conversa do whats 2], tudo está por ser inventado. E por essa via precisamos compreender que a invenção [link sobre invenção do verbete do texto do wagner que preciso comprar] é outra forma de lidar com o real, nem melhor nem pior do que, por exemplo, a tão venerada racionalidade.

Estamos então a falar, e a jogar, através da escrita, com o mito do pesquisador e, sem embargo, com o mito da pesquisa. A pesquisa que pressupõe uma autoria. Inevitavelmente estamos nesse jogo. Nós. Nós quem? Seguimos com Klingler para mais a frente (2006, p.58), expressar-nos (ou melhor, performar-nos):

Segundo nossa hipótese, o texto autoficcional implica uma dramatização de si que supõe, da mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem. Então não se trata de pensar, como o faz Phillipe Lejeune, em termos de uma “coincidência” entre “pessoa real” e personagem textual, mas a dramatização supõe a construção simultânea de ambos, autor e narrador. Quer dizer, trata-se de considerar a auto-ficção como uma forma de performance.

Sobretudo aqui, ao intentar uma pesquisa-criação, um fazer não calcado numa imaginada representação da realidade, onde portanto não há nada a descobrir, senão tudo por investigar e inventar, a noção da autoria é posta em cheque. E ainda que nos agrade a ideia do desaparecimento, a academia e o fazer científico demandam uma autoria, bem como uma função para a pesquisa. Essa busca pela verdade que não poderá ser encontrada pois:

“O imaginário, – diz Barthes – matéria fatal do romance e labirinto de redentes nos quais se extravia aquele que fala de si mesmo, o imaginário é assumido por várias máscaras (personae), escalonadas segundo a profundidade do palco (e, no entanto, ninguém por detrás)”. Daí que ele anuncie em Roland Barthes por Roland Barthes, um texto autobiográfico, que “tudo o que aqui se diz deve ser considerado como dito por um personagem de um romance”. Trata-se da posição oposta: não é que “a verdade sobre si mesmo só pode ser dita na ficção”, mas “quando se diz uma verdade sobre si mesmo deve ser considerada ficção”. No final das contas, uma e outra posição são duas faces da mesma moeda. (KLINGER, 2006, p.43).

Mas e porque estamos a falar de personagem, romance, auto-ficção e biografia se estamos a fazer uma pesquisa em Educação?

Nossa hipótese é de que a pesquisa, ao se embaralhar entre o real (enquanto aparências e efeitos [link p Nietzsche]) e o próprio corpo do pesquisador (com tudo do que é constituído) se projeta no texto como uma certa autobiografia, caso essa seja entendida na esteira da ficção, assim como o corpo pode ser visto como um palco onde se representa a realidade – uma reapresentação diferencial.

O sujeito, diz Derrida, não se define apenas como lugar e a localização de suas representações: ele mesmo, como sujeito fica apreendido como um representante. O homem, determinado em primeiro lugar como sujeito, se interpreta ao mesmo tempo na estrutura da representação. O sujeito, segundo Lacan, é aquilo que o significante representa para outro significante. […] Quando o homem determina tudo o que existe como representável, ele mesmo se põe em cena, no círculo do representável, colocando-se a si mesmo como a cena da representação, cena na qual o ente deve se “re-presentar”, ou seja apresentar-se novamente. (KLINGER, 2006, p.53).

E nesse apresentar-se novamente o ente torna-se outro. O escrevente também. O escritor se confunde com o narrador de um pesquisar; pesquisa que por sua vez pode ser vista como um conto: conto que se assemelha a um pesquisar, enquanto conta os feitos de uma voz que conta o que busca – e o drama está nesta tensão dos (des)encontros.

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