SALA DE ESTUDOS

[80] 22/01/2018

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Nesse dia (29 de dezembro) estava na casa dos meus pais, cidade do interior do Rio Grande do Sul, e aproveitava o tempo mais lento (a impressão que passa dele quando estamos em lugares com ritmos mais espaçados que o nosso) para ler/escrever. Lia Nietzsche e a Educação, de Jorge Larrosa, escrevia alguns fragmentos com esse livro e citações anotadas de outras leituras recentes, e em pausas conversava com minha família, tomava um café e respondia mensagens no whatsapp.

É o registro de uma delas que agora compartilho – literatura de whatsapp.

Minha interlocutora me responde acerca do viajar, nosso assunto no momento, dizendo que é muito bom, pois na viagem nos descobrimos – ao que eu respondo “ou nos inventamos”.

É um ponto recorrente nas partilhas das “visões” do mundo e de si a ideia do descobrir-se. Assim, segui:

– Sabe que, penso, que há toda uma ética e uma estilística de vida que diferem neste ponto crucial: de ver a si e a vida como algo da pré-existência, como essências que precisamos descobrir, como quem retira um véu para encontra ali algo importante. Ou de perspectivar a vida como quem, ao perspectiva-la, inventa a própria vida, ao procurar de determinada forma, e ao afirmar de determinado modo. Aqui, debaixo do véu tem outro véu, e outro, sucessivamente. E o descobrir passa a ser um certo modo de reconhecer nossos padrões, o que em nós se repete, o que toma força, o que compõe nosso gênio. Mas até isso é uma invenção, calcada na nossa época, na nossa cultura e na nossa educação – com uma dose do espírito que trazemos de outra vida, se formos kardecistas. (O Whatsapp é um modo de fazer literatura, não acha? É um diálogo, claro. Estou a pensar em usá-los na minha dissertação).

Ela em resposta diz que não existe uma definição só, mas que uma pessoa pode passar por várias definições. E eu, que tenho dom para teimoso, mas prefiro dizer que sou afeito e afoito por debates motivantes (e qual debate não é, em algum sentido, motivante?) respondo:

– Não existe uma definição só, mas a definição sob as quais fazemos demais definições definem essas definições e, consequentemente, o definido.

Ela diz que concorda parcialmente e eu, claro, sigo.

– Não posso dizer que debaixo do véu tem uma coisa e não tem nada, ao mesmo tempo, a não ser que afirme que ao dizer que tem tem, mesmo que não tenha  – e esse é o ponto. Uma mesa, do ponto de vista de sua composição material subatômica, é espaço vazio. Quando a ciência levanta o véu que “limita” nossa experiência (nossos órgão sensório-motores) percebe que a matéria é espaço e o “denso” é “oco”. Alheios a isso, vivemos sobre as mesas, repletas de coisas consistentes. Os dois pontos são verdadeiros e são diferentes. E nisso concluímos que a realidade é uma ficção (Flusser) – múltiplas ficções em jogo, eu diria. (isso é meio minha dissertação, ela parte desse ponto e nisso se difere da pesquisa científica hegemônica, digamos assim, ao não afirmar uma realidade pré-existente a ser descoberta sobre o método científico. E nisso me aproximo da literatura, mas também, de um certo modo de pensar a literatura, do que me parece foi definido como La Mancha, enquanto um movimento, depois de Cervantes).

E ainda, replico outra questão, quando ela me diz que existe literatura com whatsapp, pois o meio (a mídia) é mero adorno, onde o que importa é o conteúdo.

– Concordo parcialmente: o meio modela o conteúdo, se tivesse escrevendo uma carta o conteúdo se expressaria de outra forma, e nisso muda a leitura. Se a mídia fosse uma fotografia, mais ainda.

Ela me responde que pode escrever uma carta por e-mail, facebook ou whatsapp, que foto não se aplica pois estamos falando da comunicação escrita, e completa: “existe literatura sem palavras?”

– Se eu te der um livro e ao abri-lo as páginas estiverem todas em branco? Que me dizes? Não será literatura? A literatura é o que fala, ou o que possibilita ouvir? É o que mostra, ou o que possibilita ver? Não sou um entendido de literatura. De todo modo, tenho na arte uma certa ideia da qual a literatura faz parte. Nessa ideia pode existir dança sem movimentos, uma palhaça pode fazer rir sem piadas, e um teatro pode não ter atores (como se não me engano fez Brecht). Ou uma música sem notas (como a famosa peça do músico que logo me recordo o nome). Por essa via pode existir literatura sem palavras.

Ela concorda. Eu complemento:

– Desde que os meios criem as condições para tal: um palco, um corpo, um nariz vermelho, um ouvido, um livro. Por isso um meio não é um adorno. Por isso = por essa perspectiva. (John Cage, o músico).

O meio não é o ponto chave de validação da arte, segundo minha companheira virtual, mas “aquilo que a arte desperta no outro”.

– Os meios pelos quais desperta – eu reafirmo em tom jocoso (expresso por uma figurinha sorrindo) -, os múltiplos meios, não há ponto chave; um meio pode ser, inclusive, um fim. Ou um começo. Ou um meio vazio, como uma mesa, repleta de consistência. O meio sobre o qual e com o qual fizemos algo. Nós somos meios, sempre meios, nunca fim e, por isso, sem definições. Somos ficções. Somos literatura.

Ela diz que não sabe se estamos a falar da mesma noção de meio. Eu nessas horas já não estou tão interessado em definir pontos comuns, mas empolgado com as ideias:

– São muitos meios, nunca o mesmo. O meio não é o centro, mas pode ser, é um modo, um modo de pensar os modos. O meio me parece que tem um gênio de estrutura, tanto quanto, numa certa ausência dela, um modo errante de tentar, que me apeteceu chamar de estilo. Assim um meio como suporte, e um meio como modo: estrutura e estilo – e uma as vezes se sobrepondo às outras, em positividade e negatividade.

“E tu não levanta véus?”

– Levanto, pra ver o que posso inventar naquele espaço e suas singularidades. Mas também tenho muito interesse em estudar o próprio véu. E quem “o colocou” ali.

“Tu só levanta véus com propósitos?”

– Inventar não é um propósito; não é a invenção do artista que faz uma obra, é a invenção da criança que brinca: se não tiver afetos, nem levanto o véu. E se levantar e não me afetar o que lá “estiver”, nada passa.

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