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[81] 30/01/2018

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Nos cabe portanto interpretar o mundo. E não que ele esteja ali a nossa espera, repetimos que não há o que descobrir, não há nada encoberto: o mundo é superfície e sob seus efeitos nos colocamos como interpretes que fazem suas traduções criadoras. O único sentido de encoberto se encontra por detrás dos limites do nosso conhecimento: se existe um véu ele é resultado dos limites do nosso conhecimento. E aqui podemos retomar a ideia da vontade de potência como vontade de afirmar sua diferença [link para um dos posts recentes janeiro ou dezembro]; bem como a composição de si nesses encontros em pesquisa e docência: “A interpretação é, assim, aquele conhecimento ágil, ardente e basicamente disponível, aquele conhecimento em mutação perpétua, que é exigido para a exploração do mundo real” (GARNIER, 2009, p.60).

Por isso chegamos num ponto central desta pesquisa (um dos múltiplos centros dela): a pesquisa como essa relação com o mundo sempre na proximidade do caos, no limite do conhecido, nas bordas. Assim,

A interpretação se estrutura segundo dois conceitos essenciais: o “texto” e o “caos”, estreitamente associados aos conceitos de “perspectivismo” e de “valor”. […] Estamos, indica Nietzsche, perante “um texto misterioso e ainda não decifrado, cujo sentido se nos revela cada vez mais”. O “cada vez mais” é precisamente a localização do limite, sempre fugidio, onde se desenha a proximidade do “caos”. (GRANIER, 2009, p.61).

Nietzsche afirma então que o mesmo texto possibilita múltiplas interpretações, não existindo, portanto, uma definição exata.

Logo, o conhecimento deve se contentar em ser um minucioso e paciente deciframento, sob a forma de um ensaio avançando na base de “hipóteses reguladoras” e aplicando-se mais a “descrever” os fenômenos do que a explicá-los por razões e provas (IDEM, p.62).

Trata-se então de uma apropriação do mundo: de um gesto paciente de tomar para si o que lhe afeta e transformá-lo em seu; de notar, ou seja, perceber, e de anotar para si, em seu corpo, tendo essa nota um valor real (e então a realidade vale por sua potência de produção de vida – essa realidade, e não outra). Seguimos com Granier (2009. p.65):

A relação onde se realiza a própria manifestação do texto não é sofrida por um intérprete que se limitaria a “refletir” passivamente as imagens e as significações cambiantes, ela é moldada em favor de uma atividade original de cada “centro de interpretação”, e portanto é, de certa maneira, uma produção; mais exatamente, uma construção de formas, de maneira que o sentido para Nietzsche é sempre o resultado de uma mise em forme – uma configuração expressiva; “o homem”, diz ele, “é um criador de formas e de ritmos; em nada ele é tão experiente, nada lhe agrada mais do que a invenção de formas e de tipos”.

Nietzsche nos diz que “é preciso reconduzir aquilo que se chama o instinto do conhecimento a um instinto de apropriação e de conquista” (NIETZSCHE apud GRANIER, 2009, p.66). Assim, portanto, o conhecer o mundo é um ato de apropriação, uma vontade de travar com ele um contato, quer na forma de uma dança ou um combate, e assim compor sua realidade.

Não é o regime de verdade que está em jogo, não se trata de separar juízos certos e falsos, com Nietzsche, estamos para além do bem e do mal. O que nos interessa é que tal juízo, tal interpretação e valoração do mundo, lhe traga força, potencialize e vitalize a vida. Numa palavra: errútil. Palavra errada, desviada, palavra errátil.

Assim, “para o pragmatismo vital, a utilidade de um conhecimento é em si mesma o critério de sua verdade, ao passo que, perante a arbitragem mais rigorosa da veracidade nitzschiana, ela mantém apenas o estatuto de uma ficção eficaz” (GRANIER, 2009, p.76). Então nos reencontramos com o tema da ficção, enquanto um modo de pensar a produção da pesquisa, e com a autoficção, ao lidar com o mito do pesquisar-autor [link para fragmento anterior]. Performamos a pesquisa performando a escrita. Travamos nossos encontros com o mundo e sobre suas aparências produzimos nossa realidade (como uma poética da notação [talvez link]) para com ela perspectivar a educação e a vida. Ante os múltiplos movimentos, entre as diversas forças em jogo criamos nossos pontos de ancoragem, solidificamos em notas, palavras (nossos valores-úteis), somos interpretes desta realidade: performers da transcriação.

Ora, simplificação e solidificação, como meios privilegiados de domar a realidade do devir, não são violências infligidas ao devir, de modo que este fica deformado e incognoscível devido a essa interpretação vital que pretende lhe dar formas a fim de o conhecer? Sim, sem dúvida! Nietzsche, portanto, tinha razão ao recusar aos valores-úteis o título de “verdades” e de incluí-los sob a rubrica das ficções engenhosas. (GRANIER, 2009, p.79).

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