SALA DE ESTUDOS

[84] 05/02/2018

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O corpo se coloca imóvel e, sem contradição, se move para reinos distantes, por ruas conhecidas, por imagens retomadas. Eventualmente se perde e anseia encontrar-se. Repetem-se anseios e angústias, se põe em dúvida e vislumbra um futuro glorioso, neste ou naquele reino inventado. Onde quer que esteja o corpo o pensamento vagueia. Independente do controle do corpo, mais ou menos autônomo, o pensamento se move: tente parar de pensar e irá descobrir que é uma das coisas mais difíceis – entre uma lista infindável de desafios, esta deve encontrar-se no pódio. Os monges sabem muito bem desta dificuldade. E todo tipo de asceta se coloca em combate com o pensamento: não se pode negá-lo, é perigoso demais amá-lo, não se pode esquecê-lo. O pensamento nos pensa e conosco conversa, ou se impõe. Quem é esse que fala em minha cabeça[link para o primeiro fragmento de Safranki com Nietzsche e os dois que falam]? É o mesmo que se dispõe na escrita? O que é o pensamento? Onde inicia esse que fala, o que ele esconde e, talvez, o mais importante (enquanto uma filosofia prática, diria) para onde nos leva os pensamentos que nos acompanha? Sou Eu quem pensa? Sou pensado?

Dar-se conta de que se está a pensar e tomar o pensamento como uma coisa viva. Especulamos que aí se apresenta um complexo jogo: tal jogo sempre está aí, pode detrás dos nossos olhos, precisamos portanto olhar ao revés. Valèry afirma, num dos comentários que acompanham o texto-livro Introdução ao Método de Leonardo Da Vinci: “Trata-se, em suma, do uso do pensamento possível, controlado pelo máximo de consciência possível” (1979, p.15). Ter consciência de que se pensa, perceber como se pensa e o que se pensa. Se dispor ao jogo, não com anseio de dominá-lo, mas de compreendê-lo e aos poucos barganhar espaço, persuadir essa voz que fala e, quiçá, dobrá-la fazendo dela nós mesmos. Um modo de tornar-se o que se é, talvez. Um modo de ser o que passa, pois o que se é é devir, fluxo, mudança. Todavia, essa voz que à nós se anuncia, essas palavras e imagens que surgem em nossa cabeça, não se mostra como um bom viajante: teme o desconhecido e retorna para os mesmos lugares-imagens.

Valery nesta edição do livro divide o texto em dois, como em duas colunas, sendo uma delas o comentário que faz sobre o texto inicial. De modo similar, estamos a desdobrar o texto numa disposição em que o pensamento retorna e o texto, de outra maneira, comenta a si mesmo. Por essa via retornamos a essa imprecisa questão: pensar o pensamento [link nota 1]. De tal modo que neste movimento incessante de ler, pensar, escrever, pensar, ler e escrever as linhas vão sendo puxadas, tramadas, vislumbradas aos poucos; e de rascunhos (pensamentos errantes) vão ganhando forma uma imagem, uma ideia, um texto. O pesquisar é esse perguntar e as linhas que se desdobram neste território que se forma sobre a imagem da pergunta: linha de pensamento que se coaduna com as linhas de vida, intensidades que se confundem e tramam a pesquisa-docência em educação-vida – para além e aquém dos meandros e limites institucionais [link que fala do interesse na instituição e corpo, fragmento de dezembro]. Como nos apresenta Valery no fragmento abaixo: existe aí um drama. Um drama do pensamento, ou uma comédia, um jogo que se projeta na vida, em nossos feitos e efeitos que deixamos no mundo – e que por sua vez são retomados e revistos por nós mesmos (como um eu-outro futuro) ou por outrém.

Interiormente, existe um drama. Drama, aventura, agitações, todas as palavras desta espécie se podem empregar, uma vez que sejam várias e uma delas corrija a outra. Este drama perde-se com muita frequência, tal como aconteceu com as peças de Menandro. Contudo, conservamos os manuscritos de Leonardo e as ilustres notas de Pascal. Estes retalhos obrigam a que os interroguemos. Deixam-nos adivinhar graças a que sobressalto do pensamento, bizarras introduções dos eventos humanos e das sensações contínuas, depois de alguns imensos minutos de langor, se mostram a alguns homens as sombras das suas futuras obras, os fantasmas que as antecedem. (VALÉRY, 1979, p.17).

Pensar o pensamento e para tal ter com a escrita um diálogo, um modo de ver o invisível (o pensar não dito em fala), ou de reler e reescrever o já dito: podemos pensar ambos como uma escrita de si, ou, o que nos parece mais preciso, uma escrita do pensamento (uma vez que este si não é mais do que o si “lido” pelo pensamento e redito por ele). A escrita de si pensamos com Foucault (ano), e desdobraremos este ponto mais à frente, mas aqui destacamos que o autor diferencia a escrita de si de um diário: o primeiro cuida de reescrever o que passou no cotidiano, o que se disse, se ouviu, se fez; já o segundo teria uma forma de confessionário, de confessar o que não se expressou, mas lateja em pensamento. Nossa hipótese é de que ambas operações se confundem; assim, algo que se diz com palavras clareza e afirmativas, pode partir de um pensamento sombrio e por vezes irreconhecido pelo ser que fala. Esta hipótese ganha força tanto para pensar a Educação – numa perspectiva de que esta sempre passa por uma educação de si – , quanto para pensar a pesquisa: e o ponto de cruzamento nos parece que pode ser ancorado numa palavra: método.

A consciência dos pensamentos que possuímos, na medida em que se trata de pensamentos, consiste no reconhecimento dessa espécie de igualdade ou de homogeneidade; no sentimento de que todas as combinações dessa espécie são legítimas, naturais, e de que o método consiste em exercitá-las, em observá-las com rigor, em procurar o que elas implicam. (VALÉRY, 1979, p.20).

A educação não seria um educar o pensamento? O que penso eu do mundo, o que penso eu de mim e das outras pessoas? Sendo este pensar outra forma de se afirmar o mundo como invenção [ link] e como ficção [ link]. Pensar o pensamento é pensar como pesquisamos o mundo, em quais agenciamentos entramos (ver Deleuze platôs 2). Como pesquisamos, como educamos, como vivemos: e embora pesquisa e educação possam ser separadas entre elas e do mundo, como recortes necessários à composição de uma pesquisa-texto, colocamos aqui este “necessário” em cheque: uma coisa está atravessada e se atravessa em outras, assim como o nosso pensamento que se perde no limiar da escrita. Todavia, entre vida, pesquisa e educação se apresenta o pensamento, bem como o ler e o escrever que aqui seria uma forma de pensar o pensamento.

Toda via leva aos mesmos lugares, que são todos diferentes. Antes de mais nada e primeiro de tudo, é preciso buscar em meio a errância, pois aí acreditamos que entramos no jogo com o pensamento, pois o recorte, a definição, a precisão tende a nos colocar no lugar do conhecido e sermos servos do pensamento. É precisamente no risco do erro, da imprecisão e dos desvios, como no labirinto inventado [link], que perspectivamos o que pensamos enquanto pesquisadores, docentes e discentes – e assim nos apresentamos ao pensamento, e ele a nós.

É fácil alcançar o universal! Eles podem, por instantes, admirar o prodigioso instrumento que são – com o risco de negarem instantaneamente um prodígio. Mas esta clareza final não desperta senão prolongadas incertezas, indispensáveis idolatrias. A consciência das operações do pensamento, que é a lógica desconhecida a que me referi, só raramente existe, mesmo nos cérebros privilegiados. O número das concepções, o poder de as prolongar, a abundância das descobertas são coisas distintas que se produz à margem do juízo que fazemos da nossa natureza. (VALERY, 1979, p.19-20).

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