SALA DE ESTUDOS

[94] 10/04/2018

Voltar para nota anterior

 

Estado de improviso, o espaço e a improvisação: são três pontos que me parecem, agora, importantes de serem pensados para desdobrar o texto sobre o Corpo Potencial (em processo de criação) e os próximos – entre os quais, a Didática da Improvisação. Ocorreu-me também, entre outras ideias possíveis, escrever um ensaio sobre o título “O que é a improvisação?”. Tomando então esse emaranhado problemático, do qual podemos destrinchar algumas perguntas, vamos tentar reafirmar e ampliar o alcance do nosso plano de imanência conceitual (plano entendido também sobre a ideia de um plano de composição, modulando-se com conceitos, mas avançando numa apresentação performática onde a ideia se pretende imiscuída com os atos atualizados numa vida revitalizada). Daí poderíamos tirar uma primeira afirmação: a improvisação é um fazer-se intrinsicamente atravessado pela teoria e prática num espaço onde ambas se confundem; aqui, o paralelismo entre pensamento e matéria (Spinoza) funciona para pensarmos que os movimentos são paralelos e concomitantes: pensamento e ação, ideia e composição se fazem numa improvisação sobre o “princípio” da potência (soma da força com a velocidade). Princípio que supõe o esquecimento, onde a “ideia” se atualiza em ato improvisado, que retorna para a ideia do que se fez, ao mesmo tempo em que se segue fazendo; há aí algo como um controle descontrolado.

Mas vamos tentar desdobrar alguns pontos, nessa escrita que se pensa ao escrever: um pensamento da e na escrita. Partimos de algumas anotações feitas ontem, após ler o texto “O que é o contemporâneo?”, de Agamben, e uma releitura da introdução do livro “O que é a Filosofia?”, de Deleuze e Guattari. Listarei, então, alguns pontos à serem desdobrados (e claro, alguns deles, talvez boa parte, vem sendo aqui investigados, reafirmados ou revistos, desde o início da pesquisa-texto).

1 – Desdobrar-se sobre os clichês da improvisação, entre os quais dois me chamam a atenção, nos extremos: “tudo deu errado, e agora, o que faço? Só me resta improvisar…” e “ele tem o dom da improvisação, é espontâneo, expressivo, a arte flui por ser corpo: é um artista nato!”;

2 – Não me parece que exista, nem existirá, nem é de nosso interesse, circunscrever o que é o que não é a improvisação – um tal discurso talvez serviria para classificar os processos, as ações, os feitos, e isso não nos interessa; pelo todo do que vem se afirmando nessa pesquisa e nos textos sobre os quais ela se firma, não seria necessário afirmam que não pretendemos definir um modelo, senão instaurar e proliferar uma problemática. De todo modo, e para tanto, estamos a questionar a força de algumas práticas as quais tem se entendido por improvisação: questionando sua força de criação, de produção, de educação, e por isso de desequilíbrio, descentramento, de imprevisto. Tomamos como exemplo o “dançar livre” como sinônimo de improvisação; seriam então possíveis algumas perguntas iniciais: por não estar seguindo uma coreografia prévia se estaria em contato com o imprevisto ou reordenado fragmentos coreográficos anteriores, sendo, portanto, revistos? A improvisação seria um reordenar as coisas, fissurando a ordem, ou um fissurar as coisas, desordenando a ordem? Não há nenhum descabimento em afirmar que ambos processos podem ser entendidos como improviso, pois tomam força dessa ampla ideia de não reproduzir algo tal como era. Contudo, se nos ampararmos na etimologia da palavra, chegamos nessa definição: trazer ao dentro, dando a ver o que não era possível, o que era imprevisto a partir do que se tinha. Assim, o improviso é como uma íntima permuta com o fora, com o possível, onde “meu” corpo é espaço para atualização de virtuais, para forma-se das energias informes, num ato de criação.

3 – Talvez seja necessário retomar o clichê de arte, enquanto espontaneidade, expressão dos sentimentos criando belas formas, comunicando a partir de uma contemplação das coisas – onde a interioridade do artista funciona como um espaço de amadurecimento e posterior oferta das imagens que podem ser fruídas pelos normais. Excessos apolíneos. Arte como instituição; arte como técnica que formaliza…

4 – Acerca do estado de improviso, considerando a improvisação como um dar-se a ver o que não era visto – tornando possível pensar (e fazer) o que era improvável, considera-se para fins e efeitos deste estudo: o estado de improviso é um estado de prontidão, e esta pressupõe um esquecimento ativo, estado de espera, atenção dispersa, supõe um corpo presente, mas sem foco, sem objetivo; essa presença se posiciona no limiar do seu equilíbrio físico, de seu saber centrado, da afirmação de si: é esse estado de fronteira, de borda, de equilíbrio instável; é um estar em jogo, ainda que “imóvel”, pronto a precipitar-se na primeira afecção que possa desloca-lo, forças de atração: inicia-se assim o jogo da improvisação, que é um jogar-se.

5 – Para que a improvisação ocorra, tal qual estamos a entendendo, supõe-se então um estado de improviso, que é um estado de jogo (considerando que pensamos com o jogo ideal de Deleuze, em que cada jogada afirma o acaso, não há regras prévias, nem objetivos externos, nem vitória); mas também, um espaço para que essa improvisação aconteça. Espaço agora entendido como o espaço de um acontecimento: cena, aula, cotidiano. Tomamos então a ideia da amizade, em Agamben (ano): um espaço como este que estamos pensando, precisa de uma política compreendida como amizade, ou seja, a pressuposição de que minha vida é condividida. Não se trata da amizade em sua distinção social, mas de um princípio de existência: existo por existirem outros, e sou parte irredutível e inseparável desse “todo” – e ainda que naufragado em uma ilha, não estaria só (Barthes, como viver junto); evocamos aqui a afirmação de Guattari, de que os indivíduos precisam ser, ao mesmo tempo, cada vez mais singulares e solidários; o jogador afirma sua diferença no jogo, não numa meta externa, tampouco na competição com outro jogador, mas pela intensidade do jogar, por reafirmar um si possível no jogo. O espaço do jogo é amizade, é político: não há meta externa, em nosso labor interno, num jogo que pode ser entendido como uma brincadeira, construímos vínculos (brincar tem esse sentido etimológico), afetamos e somos afetados, somos os singulares possíveis entre as possibilidades imanentes à todos.

6 – Para desdobrar essa ideia do espaço de jogo como um espaço de amizade, e essa entendida como política, façamos uma composição com a ideia do amigo (Deleuze e Guattari, o que é a filosofia intro): o amigo como um intruso no pensamento, mas que nos leva ao pensar, como um entre, e como aquele que faz: o marceneiro, amigo da madeira; o filosofo, amigo dos conceitos. E o improvisador, amigo das coisas: aquele que faz de seus gestos coisas, que é coisa que faz coisas, amigo do imprevisto, que “faz ver”.

Nota: Deleuze em diferença e repetição fala dos filósofos que fazem ver (ou é sobre os estoicos na lógica do sentido); por referências nesse texto e desdobra-lo.

Seguir para a próxima nota

© 2024 SALA DE ESTUDOS

Theme by Anders Norén