SALA DE ESTUDOS

[95] 18/04/2018

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Estou sentado, nú. Preciso dizer que estou nú: essa imagem me interessa (mas você não precisa tentar imaginar). Nú, em minha sala de estar. Sentado em meu sofá-cama. Acabei de reler um artigo, quase pronto, que em breve deve ser submetido para uma revista que ainda não sei qual (trata-se de A escrita e a performance na Pesquisa em Educação: poética e autoficção). Deveria, agora, estar fazendo últimos ajustes neste texto, mas, fui tomado por pensamentos que me fizeram desviar, e quis dar a devida atenção que eles merecem. Em verdade, ao contrário, o pensamento que deu a devida atenção a mim, ao me encontrar, me cabe então ser uma via de transcriação (algo assim). O estar nú me interessa, tal qual o pensamento que chega sem aviso, e com o qual temos (evidentemente falo do meu ponto de vista) a tendência de resguardá-lo, esperando que amadureça de sua juvenil e intempestiva atitude exagerada. Pensamento meio bobo, meio deslocado, meio sem sentido, meio egocêntrico, meio nada a ver. Tentarei escrever com ele, sem demoras.

Tenho um irmão, psicólogo, mestrando no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional, na UFRGS, universidade na qual eu também curso o mestrado, no Programa de Pós-graduação em Educação. O pensamento pensava na diferença que há em nossos processos de pesquisa e escrita e que, ao que pensava, assim se faz em virtude de nossas constituições; para analisa-las, teria que lançar mão de complexos estudo (que suponho não possuir): me parece suficiente considerar que cada um nasceu com um gênio, conforme nos fala Agamben (2007), e que, ademais, apesar de viver na mesma família, passamos por experiências diferentes e, sobretudo, vivemos as experiências de modo diferente (por influência de nosso gênio).

Considerava então que o processo de pesquisa do meu irmão, ao que me parece, e tomando em contraponto aos processos da minha pesquisa, são mais analíticos, detalhistas com relação a epistemologia, aos pormenores do “esse conceito é”, ou mesmo, o autor “quis dizer”; e cabe aqui uma nota: que ele me perdoe se, ao ler, discordar e se, sobretudo, além de infiel as fatos, eu for cruel na minha leitura deles. Mas em verdade, eu invejo (inveja boa, claro) esse processo preocupado, bem como sua capacidade de compreender (ou tentar, ou mesmo pensar que compreende) o autor, o texto. Tem aí um ato de respeito, um compromisso ético. Por outra via, cá este que escreve, se inscreve numa processo de pesquisa sobre o qual poderia dizer, sem medo dos efeitos do que se diz, que se instaura sobre uma relação interesseira: não é que desrespeite o autor, pois não vê em sua profanação um desrespeito; ao contrário, sem poupar um exagerado, o autor e seus feitos só tem com isso a ganhar, quando deles tiramos o peso e a responsabilidade que outros, ou as instituições, ou eles próprios, se impuseram. Ao invés de tentar compreendê-los, convidamos eles para dançar, para jogar (meu irmão talvez diria que isso soa como romantizar o estudo e a pesquisa).

Ademais, e meu irmão sabe disso, provavelmente melhor do que eu, tais autores (pois utilizamos muitos deles em comum) fizeram essa profanação (ou coisa parecida), ou, indo ainda além, sugeriram que se fizesse. Os mesmos autores, de um ou outro modo, colocaram em perspectiva a autoria, enquanto autoridade, enquanto subjetividade produtora de um texto dotado de um sentido “do que o autor quis dizer”: mataram o autor, ou sugeriram o seu desaparecimento, afirmaram a força do texto, a polifonia, a polissemia, o deslocamento da linguagem, bem como seu agenciamento num processo coletivo e impessoal.

Fiquei a pensar que há uma nítida diferença em nossos processos, tendo com base o que o antecede, qual seja, nossa “formação”: ele, psicólogo, e eu, artista (por isso deixei em suspenso a palavra formação, uma vez que, academicamente, sou um educador físico mas, no que tange os últimos significativos anos da minha vida, e como me identifico, sou um artista). De todo modo, não se trata de dizer que os processos de estudo e pesquisa do meu irmão, que buscam uma compreensão da coerência do texto, seu contexto, a composição do plano de imanência, tal qual nos apresenta Deleuze e Guattari (1992) (os personagens conceituais, intercessores, o drama que o texto apresenta, etc), seja justificados num modus operandis da psicologia (imaginando eu uma relação do fazer clínico desta profissão como algo da ordem de uma busca e análise dos sentidos, que se imiscui com o passado das coisas – e das coisas nas pessoas, para mudar os sentidos no presente, enquanto processo terapêutico). Em verdade, não se trata de dizer que meu irmão pesquisa assim por ser um psicólogo, mas que é um psicólogo porque pensa assim; ou seja, sua constituição, seu gênio “combinam” com o “jeito” psicólogo de “ser”. É evidente que estou a ser simplista, quase mesquinho na minha análise, mas lembre-se que estou nú na minha sala de estar.

E já que estou também a falar de mim, é evidente também considerar a mesma ordem dos fatores: por “ser como sou” que “me tornei artista” (peço desculpa se essas aspas são estranhas e esteticamente desinteressantes, mas não estou encontrando outro modo de dizer esses sensos comuns e manter um certo distanciamento de um discurso simplista, que aqui serve para a dramatização ao qual se propõe – mas me parece, agora, que tenho receio de passar por simplista, que preocupação deselegante, logo eu, um corpo nú no sofá-cama);

Há, e nisso há um ponto crucial que difere nossos processos, uma questão de tempo e de tesão (ia usar uma palavra mais filosofia, como afecções, seilá, mas dado o formato esdrúxulo para o qual está escorrendo este texto, e para o qual estou começando a ficar receoso de seu resultado, senti que tesão soava melhor); Nos processos no qual estou inserido, sinto uma vontade de criação, uma ideia que surge, um pensamento que se apresenta e para o qual sei que (ou penso que sei) tem uma duração – sou excitado e solicitado a escrever: é como se tivesse que surfar nessa onda, entrar nessa dança antes que a música acabe, mostrar o truque antes que as bolas caiam e que a plateia vá embora; não me há tempo de retomar os conceitos (e confesso que me dói essa dúvida, essa incerteza se estou a usar o conceito mais apropriado, a palavra correta, mas confio mais força para a composição, para o movimento, e na fé de que ela, a composição, confira o sentido e a coerência ao texto – apesar de possíveis, e as vezes conscientes e interessados, desvios conceituais); trata-se, mais uma vez, de uma trabalho de artista – e aí nos remeteríamos a Deleuze e Guattari (1992), novamente, e à ideia do plano de composição. Voltando ao tesão: se você pensa demais, penso, broxa. Simples assim. Sei que, e é provável que não seja para todos assim, que se eu pensar demais sobre o que eu estou a pensar, se eu buscar entender, se quiser esmiuçar, para só depois iniciar a escrita, ao fazê-lo a ideia já muda e, provavelmente ela (tanto a ideia transformada quanto a que deu início ao pensamento) já não parecem mais interessantes; eu assim não escreveria, provavelmente, nada; ou escreveria algo sem força; talvez, não estou certo disso; todavia, não pretendo que pareça que todos os textos surgem num devir-máquina-de-escrever-desvairada: os processos variam e mesmo os textos produzidos nas escritas mais corridas, passam por uma reapropriação, revisão, ajustes, reescrita. Trata-se, como venho pensando, de um processo inicial, movido pela intuição, pela sensibilidade, e pela via da permissão, de um estar num jogo incerto, e nele se mover, entrando numa dança improvisada, se escrever; e de um segundo momento, de tomada de consciência, análise, reescrita. Contudo, esse segundo momento precisa estar por demais atento ao juízo moral, para não censurar, não limpar em excesso, correndo o risco de pasteurizar o texto; suponho (e podem dizer que me equivoco), que uma certa dose de imprecisão é necessária ao texto, faz parte de seu charme ou, como queira, de seu humor.

Pode até parecer egocêntrico, mas não é egoísta; egocêntrico caso se entende, e tenho dúvidas se é o caso, que esse ego está no meio de um complexo processo que o atravessa, e sua função central seria captar o que pode captar e, diferente de ser um diretor da pesquisa, que aponta para onde e como ela vai, funciona mais como um orquestrador[1] em constante jogo com o que orquestra, pois em muitas vezes o jogo vira, e somos mais uma coisa sendo orquestrada pelas forças em movimento. Para este caso, ego não me parece ser a melhor palavra.

Sigo nú, e me parece que as palavras chegam até aqui, mais que isso levaria a fadiga.

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[1] E tomo essa ideia da fala de Jorge Ramos do Ó, captada num encontro, ontem, no seminário intitulado “O gesto texturizante que compõe uma escrita inventiva”.

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