SALA DE ESTUDOS

[93] 02/04/2018

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Se apresenta a mim uma certa angústia, se instala em meu corpo. Escrever sobre o Corpo Potencial, enquanto sinto escoar as energias do meu corpo. Mas não é sobre o meu corpo que se trata, mas é também – é através dele e com ele, não posso abandoná-lo. Ainda assim, posso precipitá-lo (a mim?) em direção ao trágico, ao inevitável. Mas e se minhas forças se ausentam, se me esvaio?

Digo, me digo: espere, mantenha-se em pé, aguarde. E eu ando, e eu ando, ando-me. Ponho no toca-discos musica clássica, termina, desligo. Me visto um fone de ouvido, isolo o som exterior, mais música clássica. Ligo o computador, ascendo as duas luminárias sobre a bancada (depois de tomar o segundo café do dia). E aqui estou.

Enquanto procuro compor esse Corpo Potencial, essa ideia, essa ficção eficaz para pensar a vida (a minha?); Qual será a força desta ideia? Poderá ser tomada por outros? Eis o ponto: não se trata de direcioná-lo, é do porvir que se trata. E ele não é um objetivo, é um estado de vida, um estado para movidas. Escrever sobre esse Corpo Potencial, rastejando com a escrita sobre meu próprio corpo, esse que sinto escorrer, que sinto morrer, esse que dá sinais de vida nas dores articulares, na saúde que aponta seus pontos fracos. Na playlist começa a tocar Carmina Burana, música que utilizei em uma performance parte de um espetáculo estreado em 2016: em cena um herói de papel, de papel higiênico, marcando seu corpo com fio dentais, sobre os fios incertos que tramam nossa vida, em direção a nossa morte.

Escrever, escrever, procurar. Esse procurar que não quer procura, apesar de estar a espreita de algo, mas então por que essa palavra teima em aparecer? Agora percebo que ela é feita também de cura, pró cura (desatenção minha? Seria tão óbvio, não?). Curado como algo que amadurece. Esse amadurecer, contudo, como um processo “natural”, a vida que segue, e que se cura, enquanto inevitavelmente morre.

Devo confessar (ainda que atento a culpabilização) que não me agrada esse tom pessoal, e que escrevo assim com hesitação. Mas é por crer que não se trata de mim (de Diego, esse tal Diego): essa dor, essa dúvida, é nossa, me atravessa, não é minha. Não me interessa a fraqueza escondida, me ausentar da escrita por ter perdido consistência, os elos, o fio da meada, o ânimo. Disso não se deve falar? Suposta neutralidade do texto? Não sou eu quem fala, mas o que me compõe (e nesse caso decompõe); e também pode conferir força ao texto – e por essa via reencontrar um caminho potente que nos coloque novamente juntos: “eu” e a escrita, juntos em texto.

Nos últimos dias iniciei um primeiro ensaio acerca do Corpo Potencial. Após, decidi reler todo o Bloco de Notas e selecionar os fragmentos que me serviriam para compor esse texto. E parece que o jogo virou: o labirinto de textos me desconcerta, põe em dúvida as definições (mínimas, para que o texto possa ter coesão, ainda que suas margens transbordem). Decidi assim (ao menos por enquanto), deixar esse primeiro texto (com algo em torno de cinco páginas), como um primeiro ensaio (à ser usado ou não), e sob o título “Em tese, um Corpo Potencial”. Agora devo seguir, se houver força nesse quase esgotamento (após tantos dias em escrita, em anotações, em leituras) para a ideia que se iniciou no texto anterior, sob o título “Corpo Potencial: autoficção de um tornar-se o que se é”.

O que me leva a isso é Bataille. Pensava em inserir algumas ideias de Nietzsche: vontade de chance ao final do texto iniciado, mas parece que nele encontrei a liga que me faltava, justo em minha ideia já expressa de um corpo em estado de prontidão (estado de improviso). Enquanto caminhava pela casa, a mirar o computador como se esperando algum sinal que me convoca-se a escrever (e se ele nunca chegasse?), reli a contracapa do livro:

Nietzsche sonhou com um homem que já não fugiria de um destino trágico, mas que o amaria e o encarnaria de pleno acordo, que não mentiria mais para si mesmo e se elevaria acima da servidão social. Essa espécie de homem diferiria do homem atual, que se confunde em geral com uma função, ou seja, apenas uma parte do possível humano: seria, em uma palavra, o homem inteiro, liberado das servidões que nos limitam.

Encontrar potências e se fazer nos encontros potenciais significa aceitar que as perde, que o declínio existe sempre que se busca o ápice (que não é um fim, mas essa inteireza que se expressa como força para seguir, força trágica, devir). Assim, nos diz Bataille (2017, p.72):

Não posso negar: o declínio é o inevitável, e o próprio ápice o indica; se o ápice não é a morte, deixa atrás de si a necessidade de descer. O ápice, por essência, é o lugar onde a vida é, no limite, impossível. Só o atinjo, na muito fraca medida em que o atinjo, gastando forças sem poupar. Só disporei de forças para dilapidar de novo se recuperar, através de meu labor, aquelas que perdi.

Retornamos, por essa via, ao labor, ao labor interno: do texto e de si, por via do pensamento que retorna ao corpo, de si com o texto. Somos as convicções que nos afirmam, e que se perdem a todo o tempo; criamos imagens, definimos objetivos, mas sobre as aparências apolínicas que nos objetivam em direção ao horizonte, sempre ruge Dionísio que nos lembra (e já esquecemos?) que esse horizonte é um delírio, queimamos sempre “no mesmo lugar”. O texto de Bataille nos confere força, também, por via da presença que se impõe, que se afirma nesse jogo, onde a chance é minha garantia de vida (a nossa garantia, sem garantia nenhuma).

Abandono o bem e abandono a razão (o sentido), abro sob meus pés o abismo de que me separavam a atividade e os juízos que ela encadeiam. A consciência da totalidade é inicialmente em mim, no mínimo, desespero e crise. Se abandono as perspectivas de ação, minha perfeita nudez se revela a mim. Estou no mundo sem recurso, sem apoio, desabo. Não há outra saída senão uma incoerência sem fim através da qual só minha chance poderá me guiar. (BATAILLE, 2017, p.30).

Assim, retornaremos para a nossa sala de ensaio.

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