SALA DE ESTUDOS

O ESPAÇO DE JOGO DA CRIANÇA GUERREIRA NÔMADE QUE DANÇA

        Já deve estar implícito que, mesmo se compondo num prédio/salas/textos, este se apresenta mais como um espaço/jogo/nômade do que estrutura/forma/sedentária; ou seja, que cada espaço e os textos dos quais se ocupa — ou que ocupam cada espaço compreendido como salas —, podem ser acessados em ato único, autônomo e solitário, sem qualquer compromisso ou muito menos dívida com os demais. É providente, então, uma (des)atenção na leitura. Todo prédio é por essa via apresentado para ser explorado, mas não com um funcionário que precisa etiquetar cada objeto como parte de um inventário institucional, mas como uma intrépida criança que dele entra e sai, ao sabor e ritmos de suas vontades.

       Da criança para o nômade, do prédio para a viagem, do dentro para o fora, e da leitura de volta para a escrita: mas e ao fim, acabamos por sair do mesmo lugar?

Assim, caminha-se não como um emigrante que consigo carrega todos os pertences importantes que pode carregar, mas como um nômade que só leva o estritamente necessário, o que, por motivos práticos ou amorosos, não pode deixar para trás. E mesmo que nada carregasse em suas mãos, muito transporta em sua história, na memória inscrita nas linhas de seu corpo, nas suas curvas, curvaturas e alongamentos, no modo como anda, como vê, como se move. Seu corpo que é e não é seu, pois composto de tantos outros corpos com quais entrou em contato, seja em combate, seja em danças — de todo modo, em suas andanças. (Nota n. 97, na Sala de Jogos).

        Na citação acima, datada do dia 24 de abril de 2018, podemos encontrar uma imagem que recorre em alguns momentos da pesquisa: sua perspectivação enquanto uma viagem. Um estudo de campo no sentido em que vai ganhando espaço, em círculos cada vez maiores, compondo e inventando o território da pesquisa. Sem embargo, também circula por vezes no mesmo espaço, sobre um mesmo ponto que, paradoxalmente, se abre ao infinito — em direção ao sem-fundo da pesquisa.

       Mas, porque então o texto se apresenta, desde sua Nota de Entrada, como um prédio, como um espaço composto por salas se, a todo o momento, se fala em viagem, em fora, em amplas paisagens? Nos parece que podemos, sobre isso, fazer algumas considerações. Primeiro, que o viajante assim o é, pois encontra-se mais ou menos distante de seu lar; que só é viajante pois possui uma casa, um ponto de partida ao qual, em algum momento, retornará. Esta interpretação nos faz pensar que, de algum modo, a força da viagem está no que ela nos propõe enquanto possibilidade de perspectivar nosso espaço de partida: da viagem resulta lançar um novo olhar para nossa casa, nosso cotidiano e, quiçá, sobretudo, ao nosso corpo — a única morada da qual não conseguimos, de fato, nos distanciar. Então, como viajante que ao ir e voltar traz consigo uma nova mirada que, sem embargo, recompõe o próprio prédio: um modo de construí-lo num ato indefinido, pois se perde entre uma ação do construtor, que traz novas peças de sua viagem, e do poeta, que faz ver, via palavra, sempre um outro que estava ali, e que talvez só pode ser visto sobre um olhar estrangeiro — ainda que este estrangeiro fosse outrora o morador deste espaço. Outro ponto seria que a viagem não demandaria longos trajetos e, talvez, ela se dê justamente dentro deste prédio: em círculos cada vez menores e que, ao considerar cada espaço como um labirinto, numa suposta poética das pequenices, encontra pelos cantos ínfimas infinidades.

Acerca deste ponto, encontramos eco num manuscrito datado de 03 de agosto de 2016, sobre um projeto que se constituiu em ações singulares, em nenhum momento publicitadas até aqui. Começamos pelo manuscrito, que afirma:

Gostaria de pensar, como em Foucault, em sua aula inaugural no Collège de France, publicada como A Ordem do Discurso, que os movimentos já estão em curso, já existem. Que cabe ao meu corpo se alocar em um movimento e seguir seu fluxo. Como pegar a linha de um bonde, de um trem. Como intuir uma ação, e realizar. Como estudar uma técnica, e seguir seus movimentos. Como retomar movimentos da minha memória corporal.

        Tal projeto, denominado “HabitaçãoExperimente”, além de ações realizadas e registradas em imagem e texto, mas não tornadas públicas, teve um texto, sob o título “Primeiro experimento para um possível projeto experimental”, veiculado num blog de textos existente desde 2009, sob o título Coisas que circundam. Deste texto, publicado em 26 de maio de 2016, retiramos um fragmento que toca no tema da viagem enquanto um experimento:

Experimentar é diferente de provar.

Provar é degustar. Provar é trazer pra si algo de fora e testar seu sabor, seu saber.

Experimentar é sair de si, é inventar novos sabores, é criar novos saberes.

Experimentar é estar na zona do inominável. Provar é agregar um nome a mais na sua experiência.

Provar é desafiante, experimentar é transgressor, é transbordante.

Para experimentar é preciso sair do eixo, perder o eixo, desequilibrar-se.

Experimentar é se tornar excêntrico, sair do centro.

É cruzar a linha.

É perder a linha.

        Por essa via chegamos a outro ponto que é de suma importância para a pesquisa, a considerar desde seu título inicial, modificado posteriormente, como já mencionado, e ao tema que constitui as primeiras notas do Bloco de Notas: trata-se da criação de um Corpo Potencial (as vezes apresentado sob a grafia CorPo). Várias notas sobre este tema foram escritas, a partir de perspectivas variadas em composição com os textos lidos: desde a constituição deste corpo, sua relação com uma aula, consigo, com a escrita; enfim, diversas tentativas não de dizer o que este corpo é, mas como ele poderia se compor e funcionar. Dentre as possíveis leituras no Bloco de Notas, vamos destacar um fragmento datado de 07 de dezembro de 2017; logo depois, iremos nos remeter a outro texto, este de 2009, que de alguma forma parece ter parte da matéria que, perdida no tempo, passa a se atualizar neste:

O CorPo é um autoexperimentador. O CorPo “governa a si”. E antes mesmo de criar jogos, entende que está em jogo. Entende que está sempre sendo capturado por uma (in)visível malha de poderes que se inscreve sobre seu corpo subjetivado. O CorPo resiste, cria seus próprios jogos, produz variações de si. Entende que não somos indivíduos, mas divíduos, e multiplica essas divisões. É sempre possível ser um outro nesse jogo, se por máscaras, ou tirá-las, e se desconhecer. Ele é um mediador, um facilitador, um provocador, um compositor, um jogador, um juiz, artista, um professor. Um si que joga consigo, entendendo esse jogo como experimentos auto-impostos para os desvios necessários à vitalidade, para que os fluxos e intensidades passem. E são esses momentos intensivos de desvios criativos onde o ser se perde nos próprios movimentos, mas neste ínterim algo capta, nota, e anota em sua existência (e compõe com seu corpo), que estamos definindo como improvisação. (Nota n.63).

        Tal fragmento foi escolhido por nos parecer apresentar a relação deste CorPo com o jogo e o improviso: é esta composição que afirma o tema da pesquisa, de um corpo a jogar em improvisação; intento que se desdobra num texto produzido via escritos também em jogo, para improvisar, nos desvios de um discurso desnivelado, com e sobre o jogo e as improvisações: para pensar sobre os corpos numa aula, no cotidiano, nos espaços vitais.

       Aqui nos remetemos então, num fragmento que, mesmo um pouco longo, impressiona pelos pontos em comum com essa pesquisa; escrito em 17 de janeiro de 2009, inaugurando o já referido blog, um texto esquecido no tempo e que parece sorrir ao nosso reencontro, num chiste demarcado sobre o título: “Tudo tem um começo. Ou não?!”. A prova de que, provavelmente, nos repetimos e nesta repetição produzimos variações. Tal texto, as vésperas de se distanciar uma década desta atual pesquisa, poderia muito bem reduzir esta Introdução, pelo menos quanto as suas intenções e o método adotado:

[…] desejo questionar a minha colocação como autor, criador do blog e desta postagem. Começando do início, para entender a idéia do blog (para ambos entendermos, você e eu). Como se forma este discurso, esta escritura? Questionamento feito. Usarei o recurso de auxílio à lista (de livros e textos referência) para esmiuçar esta questão, dar a ela formas mais tangíveis.
Cito então Foucault, na sua aula inaugural no Collège de France, em 2 de dezembro de 1970: “gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios.[…] Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna. O ponto de seu desaparecimento possível”.
Uma tendência das postagens aqui é de que tenham, com alguma frequência, e por variados motivos, citações. Digo os motivos que sei agora: nem sempre terei a capacidade de explicar o que pretendo sem este auxílio, ou citarei por ter o prazer de reler e citar, me excitar, e trazer para cá, o que está em mim e veio de lá, de algum lugar. E está aí o segredo desta ideia de blog (tiro no pé, não se deve contar os segredos, ainda mais na internet, mas o farei com cautela): é o que vem de lá, ou dali, quiçá está aqui, ou do lado de lá. Pode estar em cima do muro, ou do arame. Pode estar numa bolinha, numa poesia, música, ou nas páginas de um livro. Quem sabe nas palavras de um amigo, ou de uma moça bonita. Num quadro, numa roda, num circo. No passo, na dança. Num tropeço, ou num pássaro. Sabe-se lá onde estará, mas sabe-se que circunda por aí. E o que circunda? Muita coisa. Mas para o blog é o que faço, vejo, ouço, é o que me toca. O que eu consigo perceber. Ou o que se faz perceber. Pois talvez seja maior do que eu: não necessariamente há esta hegemonia minha em relação ao que circunda: seja este outro um indivíduo, ou um objeto, ou experiência, ou outro outro. Mas há de tocar meu corpo. Há de transpassá-lo. Movê-lo. Meu corpo. Os corpos. É o corpo em devir de Deleuze: “corpo como poder de afetar e ser afetado”. O corpo de Barthes, que é afetado pelo “prazer do texto que é esse momento em que meu corpo vai seguir sua próprias idéias- pois meu corpo não tem as mesmas idéias que eu”. Um corpo que em Gil é paradoxal, que cria uma relação com o espaço ao seu redor, tão íntima, como as que tem consigo: “um espaço do corpo”. “O corpo que é sujeito numa sociedade, onde é treinado para ser produtivo, enquanto dócil. Quanto mais homogêneo, mais fácil pode ser asujeitado, submisso, manipulado. Como escapar desse corpo?” “Nesse mundo onde tudo vem da troca impossível. A incerteza do mundo é que ele não tem equivalente em parte alguma e que ele não se troca com coisa alguma. A incerteza do pensamento é que ele não se troca nem com a verdade nem com a realidade” (Baudrillard). Por isso a arte, a poesia. Disse Borges: “em poesia o sentimento basta, imagino. Se o sentimento nos invade, isso há de ser suficiente”. Disse Pessoa:” Bastar-nos-ia sentir com clareza a vida E nem repararmos para que há sentidos…” Digo eu: de tudo o que está aí, no mundo, o que? Jaz aqui um espaço potência. Muito pode acontecer, ou nada. Aqui está um espaço para o que circunda, e para quem circundar. Porém, para tanto, é preciso entrar na dança, mesmo que não se saiba dançar (mas digo: isso é o que fizeram você pensar, todos sabemos dançar!).

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