SALA DE ESTUDOS

[110] 06/03/2019

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Seguindo nossa excursão, de Deleuze e Guattari, pelo interesse numa Ciência Menor, que possa seguir os fluxos, que possa seguir, inclusive, e no extremo, o intangível — o que não significa, ininteligível — chegamos à Bergson, mais precisamente pela relação entre intuição e inteligência, apontada no excerto do Tratado de Nomadologia, o qual utilizamos ao final de nota anterior. Passamos então, no nosso próprio exercício de seguir, pelos rastros de um filósofo ao outro, aos problemas que nossa própria intuição coloca: e que a inteligência e seus artifícios — entre os quais esse Bloco de Notas em uma estratégia que estamos elaborando no entorno da ideia de uma Poética da Notação — formalizam respostas possíveis. Faremos então algumas anotações sobre a introdução do livro A Evolução Criadora, as quais desdobram nossa ideia acerca de uma Ciência Nômade do Improviso, ou Ciência da Imprevisão. Sobre a inteligência, então

Veremos que a inteligência humana se sente em casa enquanto for deixada entre os objetos inertes, mais especialmente entre os sólidos, nos quais nossa ação encontra seu ponto de apoio e nossa indústria seus instrumentos de trabalho, veremos que nossos conceitos foram formados a imagem dos sólidos, que nossa 1ógica é sobretudo a lógica dos sólidos, e que, por isso mesmo, nossa inteligência triunfa na geometria, na qual se revela o parentesco do pensamento lógico com a matéria inerte e na qual basta a inteligência seguir seu movimento natural, após o mais leve contato possível com a experiência, para ir de descoberta em descoberta com a certeza de que a experiência segue logo atrás dela e lhe dará invariavelmente razão (BERGSON, 2005, p.9).

Seguindo, acerca da totalidade da vida, para além dos sólidos, ou da nossa lógica dos sólidos, Bergson continua (2005, p.10): “nenhuma das categorias de nosso pensamento, unidade, multiplicidade, causalidade mecanica, finalidade inteligente, etc., se aplica de forma exata as coisas da vida”.  Na sequência, aponta uma crítica ao que, nos termos de Deleuze, aparece enquanto o pensamento da representação, e, logo, afirma a contemplação do improvável que emerge nos avanços científicos:

Em vão empurramos o vivo para dentro de tal ou tal de nossos quadros. Todos os quadros estouram. São estreitos demais, sobretudo, rígidos demais, para aquilo que gostaríamos de colocar neles. Nosso raciocínio, aliás, tão seguro de si quando circula em meio às coisas inertes, sente-se pouco à vontade nesse novo terreno. Seria muito difícil citar uma única descoberta biológica que se deva ao puro raciocínio. E, o mais das vezes, quando a experiencia finalmente nos mostra como a vida procede para obter um certo resultado, descobrimos que seu modo de operar e precisamente aquele no qual nunca teríamos pensado (BERGSON, 2005, p.10).

E, numa crítica à filosofia evolucionista da época, mas da qual podemos encontrar indícios no pensamento presente, em nosso caso, da Educação, afirma:

Começara por nos mostrar na inteligência um efeito local da evolução, uma pequena luz, talvez acidental, que ilumina o vai-e-vem dos seres vivos na estreita passagem franqueada a sua ação: e eis que, de repente, esquecendo o que acaba de nos dizer, transforma essa lanterna manobrada no fundo de um subterrâneo em um Sol que iluminaria o mundo. Intrepidamente, apenas com as forças do pensamento conceitual, lança-se na reconstrução ideal de todas as coisas, até mesmo da vida (BERGSON, 2005, p.11).

Disso ele descreve que, após muito tempo de orgulho, esse pensamento, em seu decurso, ao ver a lógica encontrar diversos obstáculos, e contradizer-se, acaba por recuar, e postar-se sobre um “excesso de humildade”, ao concluir: “a essência das coisas nos escapa e sempre nos escapara, movemo-nos em meio a relações, o absoluto não é de nossa alçada, detenhamo-nos frente ao Incognoscível”, e que, portanto, “não e mais a própria realidade, diz ela, que irá recompor, mas apenas uma imitação do real, ou antes uma imagem simbólica” (BERGSON, 2005, p.11).

Bergson, contudo, não está de acordo com essa postura, com uma conclusão de que a realidade só pode ser simbolizada, ou que a mimese, seria nosso recurso derradeiro frente a algo que seria inacessível: ora, pois, ser incognoscível, não significa, inacessível, uma vez que não é somente pela cognição que acessamos a “essência” das coisas: e daí sua conclusão, como veremos, pela intuição. Seguimos sua argumentação: a de que a ação não pode agir no irreal, logo nosso corpo foi constituído num corpo-a-corpo com o real; que nossa forma intelectual, assim, se moldou em reciprocidade com seu entorno material; ele diz, contudo, que até poderia aceitar que um ser, que nasce para especular, imaginar, sonhar, inventa-se sua própria realidade, mas resta que detemos uma inteligência que age sobre as coisas, logo, é uma inteligência (logo um corpo, digo eu) que toca algo do absoluto; ele afirma, então, que não teríamos colocado em dúvida esse valor absoluto de nosso conhecimento, se a filosofia não tivesse apontado contradições em nossa especulação, mas, tal como sugere, essas contradições são postas em cena a partir de um conhecimento intelectual não orientado para este “absoluto”, e sim para a “matéria inerte” — seria, as supostas contradições destas especulações no entorno do absoluto, um falso problema, n doos termos que Deleuze nos apresenta no primeiro capítulo do livro Bergsonismo. E, então, pergunta (e tal pergunta pode ser tomada como um fragmento precioso para nossa dissertação no entorno do improviso, da improvisação e, nesse exercício atual, de uma ciência da imprevisão):

Caberia então renunciar a aprofundar a natureza da vida? Caberia ater-se a representação mecanicista que o entendimento sempre nos dará dela, representação necessariamente artificial e simbólica, uma vez que restringe a atividade total da vida a forma de uma certa atividade humana, a qual não é mais que uma manifestação parcial e local da vida, um efeito ou um resíduo da operação vital? (BERGSON, 2005, p.12).

Com efeito, sugere que a inteligência precisa fusionar com outras capacidades da consciência (e pergunto: ou inconscientes?), que os humanos

desenvolveram-se outras formas da consciência, que não souberam libertar-se das amarras exteriores nem reconquistar-se a si mesmas, como o fez a inteligência humana, mas que nem por isso exprimem menos, elas também, algo de imanente e essencial ao movimento evolutivo. Aproximando-as umas das outras, fazendo-as fusionar em seguida com a inteligência, acaso não obteríamos, desta vez, uma consciência co-extensiva à vida e capaz de, voltando-se bruscamente contra o impulso vital que sente atrás de si, obter dele uma visão integral, ainda que sem dúvida evanescente? (BERGSON, 2005, p.13).

Ainda, ao que defendem a supremacia da inteligência, afirma:

E teriam razão em dizê-lo, caso fôssemos puras inteligências, caso não houvesse sobrado, em volta de nosso pensamento conceitual e lógico, uma nebulosidade vaga, feita da substância mesma às expensas da qual se formou o núcleo luminoso que chamamos de inteligência. Ali residem determinadas potências complementares ao entendimento, potências de que só temos um sentimento confuso quando permanecemos fechados em nós, mas que irão esclarecer-se e distinguir-se quando se perceberem a si próprias em ação, para assim dizer, na evolução da natureza. Aprenderão assim que esforço precisam empenhar para intensificar-se e para dilatar-se no sentido mesmo da vida. (BERGSON, 2005, p.13).

Essas potências supomos ser acessadas em improvisação, ao modo do que estamos propondo, de uma ação imediata, que corta o tempo, que compõe, media, sem juízo concomitante, e evitando o juízo prévio; ser for feita de inteligência a improvisação, ela é de outro tipo, se afasta um tanto do pensamento lógico, da racionalidade: ao menos no primeiro momento, já que estamos tomando a improvisação pelo exercícios de, inclusive, desviar do movimento mais óbvio (tensão da memória) em direção ao improvável (e por aí a proposta de um Método Labiríntico, bem como de uma Poética da Notação Esquizográfica). Essas “potências de que só temos um sentimento confuso”, acreditamos, ou pretendemos, criar condições de possibilidade, em jogos de imprevisibilidade para que, ao reduzir a agência da razão, possam ganhar espaço e se manifestar.

Ademais, Bergson segue fazendo um paralelo entre teoria da conhecimento e teoria da vida, para as quais faremos aqui, sobre nossa responsabilidade, uma relação com a Ciência de Estado e a Ciência Nômade; e assim, também, entre inteligência e intuição (ou ainda outras faculdades); propondo que estas duas teorias trabalhem juntas, vejamos:

O que equivale a dizer que a teoria do conhecimento e a teoria da vida nos parecem inseparáveis uma da outra. Uma teoria da vida que não vem acompanhada de uma crítica do conhecimento é fadada a aceitar, tais e quais, os conceitos que o entendimento põe a sua disposição: não pode fazer mais que encerrar os fatos, por bem ou por mal, em quadros preexistentes que ela considera como definitivos. Obtém assim um simbolismo cômodo, talvez mesmo necessária à ciência positiva, mas não uma visão direta de seu objeto. Por outro lado, uma teoria do conhecimento que não reinsere a inteligência na evolução geral da vida não nos ensinara nem como os quadros do conhecimento se constituíram, nem como podemos ampliá-los ou ultrapassá-los. É preciso que essas duas investigações, teoria do conhecimento e teoria da vida, se encontrem e, por um processo circular, se impulsionem uma a outra indefinidamente (BERGSON, 2005, p.14).

Por essa via podemos desdobrar nossa ideia acerca de uma Ciência Nômade do Improviso, ou Ciência da Imprevisão, além da ideia sobre um Corpo Potencial e, da pesquisa-improvisação, num quebra-cabeça que ainda precisamos resolver.

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