SALA DE ESTUDOS

[112] 25/06/2019 – 03/07/2019

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O que passa entre o real e o pensamento? Ou, noutros termos, acerca do corpo que se exercita ao pensar o real: o que acontece nesta correlação? Ou seja, parece existir uma reciprocidade entre o corpo que pensa sua existência e a própria existência em si, na qual o corpo é, de algum modo, também pensado. São estas questões que, de alguma maneira, tenho tentado elaborar para pensar, com destaque, o que é do âmbito dos imprevistos nesta relação, podendo assim dizer, entre corpo e mundo: “cada corpo, por menor que seja, contém um mundo, visto que está esburacado de passagens irregulares, rodeado e penetrado por um fluído cada vez mais sutil” (DELEUZE, 1991, p.16).

A leitura deste livro de Gilles Deleuze, “A Dobra. Leibniz e o barroco”, acima citado, coloca estas e outras questões em cena. É, certamente, um livro para ser revisto, e que remete não somente aos estudos de Leibniz, mas também a outros: a mim, no âmbito da atual pesquisa de mestrado, interessa a relação do perspectivismo com Nietzsche (o que não aparece neste livro, mas me pode estudado considerando os livros de Deleuze sobre este filosofo), e, ademais, uma curiosidade sobre Whitehead, citado pelo autor no capítulo “O que é um acontecimento”. Um estudo que demanda tempo e, talvez, um acúmulo do qual, no momento, não sou detentor. Se faz necessário, em síntese, mais matérias para rebater sobre essa matéria textual ou, ainda, mais conhecimento de campo (de campos de conhecimento) sobre os quais se deslocar para, justamente, perspectivar o que é dito — com destaque, claro, para a matemática e a filosofia. Mesmo assim, e sobretudo por isso, produzo essa nota por ocasião do seminário que teve por objetivo estudar o referido livro, ocorrido na Faculdade de Educação/UFRGS, sob responsabilidade da Professora Paola Zordan, no segundo semestre de 2018.

Esta nota tarda a chegar em função da hesitação justificada pelos motivos acima, no entanto, o livro acabou por funcionar, na escrita da Dissertação, nas sombras de outros, atraindo certas noções, possibilitando que se pensasse o que se pensou, de um modo e não de outro (eu havia iniciado o estudo deste livro ainda em 2017). É justo que algo sobre isso seja dito, então, e o farei em alguns pontos que me pareceram mais relevantes para serem destacados agora (e os faço a partir de várias anotações de leitura, arquivadas no aplicativo Evernote, e conforme os procedimentos apresentado em Sobre uma Poética da Notação e na nota nº100).

A inclusão: sobre o notar e anotar como indiciamento do real

Esta noção de inclusão, que nomeia a parte dois do livro, é central para o estudo sobre o qual tenho me desdobrado: trata-se de supor que há uma inflexão, enquanto expressão de um real, rebatida na mônada — este corpo, então, dobrado em si, mas em estrita relação com o fora, operando uma inclusão deste real; diria que seria algo como uma inclusão de um fato, ou um dado do real, numa paisagem mental; ou, ainda antes, ou simultaneamente, numa inscrição sobre as superfícies desta mônada, no sentido de uma percepção. É evidente que estou a fazer vários desvios para o que me interessa, mas vejamos o que Deleuze tem a nos dizer, no início do Capítulo 4, “Razão Suficiente” (1991, p.67-68 ):

Uma causa é da ordem do que sucede, seja para mudar um estado de coisas, seja para produzir ou destruir a coisa. Mas o princípio reclama que tudo o que sucede a uma coisa, aí compreendida as causações, tem uma razão. Se se denomina acontecimento o que sucede a uma coisa, seja que esta sofra ou que o faça, dir-se-á que a razão suficiente é o que compreende o acontecimentos como um dos seus predicados: o conceito da coisa ou a noção. “Os predicados ou acontecimentos”, diz Leibniz. Daí o caminho percorrido precedentemente, da inflexão à inclusão. A inflexão é o acontecimento que sucede à linha ou ao ponto. A inclusão é a predicação que põe a inflexão no conceito de linha ou do ponto, isto é, nesse outro ponto que será chamado de metafísico. Passa-se da inflexão à inclusão, como do acontecimento da coisa ao predicado da noção, ou como do “ver” ao “ler”: o que se vê sobre a coisa ou que se lê em seu conceito ou sua noção. O conceito é como uma assinatura, uma clausura. A razão suficiente é a inclusão, isto é, a identidade do acontecimento e do predicado.

Vejamos por que este fragmento interessa para a pesquisa atual. O que aponta Deleuze no texto, enquanto “ver” e “ler”, se assemelha ao que temos proposto enquanto notar e anotar: noto algo nos acontecimentos (ou noto o acontecimento), anoto em pensamentos, de certa forma, como essa inclusão que predica, que atribui e oferece sentidos ao visto, passando a lê-lo: e este anotar passa pela escrita como um exercício de pensar o pensamento que inclui certas inflexões, mas que se esforça para pensar também o que exclui da sua vista e que é, portanto, da ordem do não-pensado. Por isso a Poética da Notação, no modo como tenho operado aqui, se vale de uma e-laboração, no sentido de produzir um ciberespaço como repositor, como um cérebro em sua proliferação de imagens e passagens, que passa a funcionar, atualizando-se, na presença de um agente “externo”: aquele que vem ao site, e que pode ser — e é, frequentemente —, este mesmo que aqui escreve.

Esta noção de inclusão, que certamente pode e será desdobrada na pesquisa que segue pós-mestrado, precisa ser correlacionado à outra, qual seja, o da perspectiva: mais precisamente, para o que nos interessa aqui, para o exercício de deslocar-se (como pela vertigem de um Método Labiríntico), para apreender um acontecimento (novamente a inclusão), a partir de outro ponto de vista. Vejamos.

Da perspectiva: sobre os deslocamentos necessários

Começo, então, com essa exposição incisiva de Deleuze (1991), na p.37.

Não é exatamente um ponto, mas um lugar, uma posição, um sítio, um “foco linear”, linha saída de linhas. Esse lugar é chamado ponto de vista, na medida em que representa a variação ou inflexão. É esse o fundamento do perspectivismo. Este não significa uma dependência em face de um sujeito definido previamente: ao contrário, será sujeito aquele que vir ao ponto de vista, ou, sobretudo, aquele que se instalar no ponto de vista. Eis porque a transformação do objeto remete a uma transformação correlativa do sujeito: este não é um subjecto , mas um superjecto. […] Não é o ponto de vista que varia com o sujeito, pelo menos em primeiro lugar; ao contrário, o ponto de vista é a condição sob a qual um eventual sujeito apreende uma variação (metamorfose) ou algo = x (anamorfose). […] Trata-se não de uma variação da verdade de acordo com um sujeito, mas da condição sob a qual a verdade de uma variação aparece ao sujeito.

Um lugar, enquanto ponto de vista, como condição sobre a qual a verdade aparece: um espaço, por essa via, como condição de possibilidade, dotado de vários lugares sobre os quais se instalar e perspectivar o real, produzindo realidades com suas respectivas verdades; o que nos aproxima, pelo caráter provisório da realidade apreendida por determinado ponto de vista, da ficção enquanto exercício de perspectivação deste mesmo real, se diferenciando de um suposto realismo — do qual nos fala, criticamente, Bachelard (2010) — por aceitar como inexorável a apropriação de um acontecimento singular realizada pela singularidade do corpo que vê; logo, avança-se para a invenção, para a narrativa, fantasiando, experimentando e expandindo o que, para o realista seria uma descrição dos fatos, e para este outro (e me incorporo neste outro) é já desde o início uma transcriação, pelo simples fato da linguagem ser de outra ordem.

Caberia ainda algumas considerações sobre o corpo, como aparece neste livro, para chegar ao ponto que nos interessa, sobremaneira, no presente da pesquisa: uma caosmologia, onde o corpo se produz via uma caosmogênese, inserindo nesse jogo existencial não destinado, não progressivo, portanto. Um inserção de questões do corpo, a partir deste livro, foi feita na nota de nº16, onde tentei tratar sobre a noção de improviso, e que, indiretamente, acaba nos levando para o estudo deste caos — ou melhor, neste caos. De todo modo, segue a citação anexada naquela nota, datada de 22 de agosto de 2017.

Se o mundo é infinitamente cavernoso, se há mundos nos menores corpos, é porque há ‘molabilidade por toda parte na matéria’, o que dá testemunho não só da divisão infinita das partes mas também da progressividade na aquisição e na perda de movimento, realizando-se, ao mesmo tempo, a conservação da força. A matéria-dobra é uma matéria-tempo, cujos fenômenos são como a descarga contínua de uma ‘infinidade de arcabuzes ao vento’. Aí também se adivinha a afinidade da matéria com a vida, uma vez que é quase uma concepção muscular da matéria que põe a molabilidade em toda parte. Invocando a propagação da luz e a ‘explosão no luminoso’, fazendo dos espíritos animais uma substância elástica, inflamável e explosiva (DELEUZE, 1991, p.8).

Para uma caosmologia

Este estudo que seguirá se desdobrando e seguindo as pistas deste livro, para tanto ainda retomando sua leitura, e compondo com outras matérias, se dará — ao menos numa composição em específica, ou numa série — no entorno da ideia de caosmologia (no momento sendo processada na produção de uma aula-espetáculo, sobre o mesmo título). Trata-se de pensar uma relação com o caos por apreensões de pontos de linhas divergentes que o compõe, mesmo que, em boa parte dos procedimentos, essa apreensão seja feita em segunda mão, ou seja, tomando as funções, das ciências, os conceitos, da filosofia, e os blocos de sensações das artes como uma entrada ao caos, a partir de um estado de jogo em errância por esse material produzido pelo humano, à espreita de passagens que nos remetam ao caos originário. Doutro modo, também, pelo exercício contrário, de uma esforçada atenção com esquecimento de si, enquanto indivíduo, conjecturando ser possível, ao menos por um lapso de tempo, adentrar esse caos (ou perceber-se desde já nele), notando o nada e todos os sentidos ao mesmo tempo — talvez seja isso o que é encontrado no zen como um satori.

Cito, por fim, o último parágrafo do livro, com o qual termino também esta nota:

Uma vez que o mundo é agora constituído de séries divergentes (caosmos) ou que o lance de dados substitui o jogo Pleno, a mônada já não pode incluir o mundo inteiro como num círculo fechado modificável por projeção, mas ela se abre a uma trajetória ou espiral em expansão, que se distancia cada vez mais de um centro. […] Já não se pode distinguir entre o estado privado de uma mônada dominante (que produz em si mesma seus próprios acordos/acordes) e o estado público das mônadas em multidão (que seguem linhas de melodia), mas as duas entram em fusão numa espécie de diagonal em que as mônadas entrepenetram-se, modificm-se, inseparáveis de blocos de preensão que as levam consigo, constituindo outras tantas capturas transitórias (DELEUZE, 1991, p.208).

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