SALA DE ESTUDOS

[47] 13/10/2017

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Notas que apontam para esta: [6] [19]

 

E qual jogo estamos a jogar agora [me refiro, sobretudo, aos 9 fragmentos anteriores]? Um jogo de esconde-esconde. Lá vou eeeeu… Um jogo de mostra-mostra. Um jogo onde “eu” [este que escreve], através da ironia, do diálogo com o outro que é, em certa medida, um si mesmo, e de outros dispositivos variados, busca desnudar o Eu, se é que isso é possível – ao menos apontá-lo atrás de seus esconderijos.

Nossa fantasia, o Corpo Potencial, é um corpo sempre em jogo. Um “eu” que joga com o Eu[autoexperimentação com Nietzsche]. Um jogo para criar espaço à um terceiro jogador que, em verdade, não ocupa um espaço de fato, mas constitui e intensifica os fluxos do próprio jogo, e as mutações desse corpo a jogar. Pensamos aqui com as intensidades, com o Corpo sem Órgãos de Deleuze e Guattari, que se não é um jogador, pois isso demandaria, em certa medida, um corpo organizado, mas se projeta nesse jogar, e produzindo a desterritorialização do jogo e dos jogadores, promove o devir.

O jogo é então uma estratégia para confundir os jogadores, para desequilibrar os sujeitos. É um jogo para desestabilizar, descentralizar[ ]. É um labirinto, produz vertigem e, ao mesmo tempo, um jogo que tenciona para os limites, para a exterioridade. É um jogo de linguagem.

Se, de fato, a linguagem só tem seu lugar na soberania solitária do “eu falo”, por direito nada pode limitá-la – nem aquele a quem ela se dirige, nem a verdade do que ela diz, nem os valores ou os sistemas representativos que ela utiliza: em suma, não é mais o discurso e comunicação de um sentido, mas exposição da linguagem em seu ser bruto, pura exterioridade manifesta; e o sujeito que fala não é mais a tal ponto o responsável pelo discurso (aquele que o mantém, que através dele afirma e julga, nele se representa às vezes sob uma forma gramatical preparada para esse efeito), quanto à inexistência, em cujo vazio prossegue sem trégua a expansão infinita da linguagem. (FOUCAULT, 2001, p.220).

Seria um ponto de partida, mas nos parece que esse vazio está um tanto cheio. É preciso espaço, produzir rachaduras, rupturas. Nesses tempos de acúmulo (e já foi diferente em outros tempos?) é preciso sacudir a estrutura, dissolver a liga das sedimentações, afrouxar os estratos, fazer do Eu um sujeito à dançar[ ]. Se esse espaço está cheio, é preciso embaralhar os códigos, dispô-los à novas composições. Ampliar os limites desse espaço, ou permear esse limite, ou assumir que esse limite é uma ficção: e que esse espaço pode tanto estar cheio quanto vazio. Que eu falo quando digo que falo, e que encho esse espaço quando digo que encho; e quando afirmo esse espaço é que ele “existe”. Qual a margem de jogo para essa deriva, para esse desfazer fazendo? Afirmar a ficção certamente não é o suficiente: por todos os lados se reafirmam verdades – e se ficcionam “novas” verdades. Nunca será suficiente, pois não é disso que se trata. Estamos a definir, e reafirmar, uma problemática[ ], para a qual produzimos corpos num território de jogo, numa incerta deriva, que é texto, que é corpo do texto do corpo que faz o texto e se refaz em outro corpo enquanto faz o texto[1].

Nosso exercício passa pela afirmação de um caminho e a aceitação dessa batalha[ ], uma batalha que se confunde ora com um jogo, ora com uma dança. E que é um ou outro, ou outro, ou outra, na medida de sua definição (medida desmedida, que sempre transborda), que é sempre todos, e outros, ao mesmo tempo. Do caminho e da batalha, onde se vive junto, que nos solicita, onde nos soli/citamos:

O pensamento do pensamento, uma tradição mais ampla ainda que a filosofia, nos ensinou que ele nos conduzia à mais profunda interioridade. A fala da fala nos leva à literatura, mas talvez também a outros caminhos, a esse exterior onde desaparece o sujeito que fala. (FOUCAULT, 2001, p.221).

Estamos a falar de/com Educação. De jogar com esses corpos[ ], de perder-se para encontrar encontros. E é necessário suportar certa vertigem, a náusea de estar à deriva[2]; e é heroico e é risível, é um ato de bravura e de tolice, é ganhar e perder, são os três lados da mesma moeda.

Mas, sabemos que para cometer certa travessia como essa, a que comporta um exílio, é necessário que estejamos prontos para perder muitas coisas. Para passar certa fronteira e começar a habitar uma Educação que experimenta e cria é necessário estar disposto a perder certezas, estabilidades, razões hierárquicas utilitaristas, autoridade arbitrária e inútil e, nessa perda, ganhar ou reinventar a capacidade de estranhar, a capacidade de ler (ao ter perdido o modo harmônico de fazer uma leitura) a capacidade de naufragar como fez o Robinson de Michel Tournier que, depois do naufrágio e da redescoberta da terra, pelo encontro que teve com Sexta-feira (o araucano), deu outro valor ao governo da terra, do medo, dos outros e de si. (ADÓ, 2016, p.144).

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[1] O ‘sujeito’ da literatura (o que fala nela e aquele sobre o qual ela fala) não seria tanto a linguagem em sua positividade quanto o vazio em que ela encontra seu espaço quando se enuncia na nudez do ‘eu falo’” (FOUCAULT, 2001, p.221).

[2] “O prazer do texto não é forçosamente do tipo triunfante, heroico, musculoso. Não tem necessidade de se arquear. Meu prazer pode muito bem assumir a forma de uma deriva. A deriva advém toda a vez que eu não respeito o todo e que, à força de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e intimidações da linguagem, qual uma rolha sobre as ondas, permaneço imóvel, girando em torno da fruição intratável que me liga ao texto (ao mundo). Há deriva, toda vez que a linguagem social, o socioleto, me falta (como se diz: falta-me o ânimo). Daí por que um outro nome da deriva seria: o Intratável – ou talvez ainda: a Asneira” (BARTHES, 1987, p.28).

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