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[10] 10/08/2017

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NOTA

Parece-me necessário assumir o desejo cambaleante do sujeito aqui inscrito: de chegar sabe-se lá onde, mas de chegar. Vontade de potência captada pelo sistema – do capital, do poder mais que da potência, do sujeito mais que do ser… Junto, o tensionamento de si para consigo, para que o jogo continue, para que não tenha vencedor. Em resistência[1], inserir-se no texto, presentificar-se, não como persona, mas como ser que é peça inserida nesse jogo, e que nele luta (sem jamais deixar de rir) para afirmar o devir, em proveito do sujeito: “não é o outro senão o próprio demônio da possibilidade. A preocupação do conjunto do que ele pode o domina. Ele observa a si mesmo, manobra a si mesmo, não quer ser manobrado”[2]. A afirmação de uma potência em educação, a produção de corpo potenciais, num processo que pode ser denominado de autoeducação, sem com isso criar um modelo, um ponto de chegada, um vencedor… O alvo é o processo, no qual se entra e se sai, pela exterioridade, sem nunca, de fato, se sair completamente.

Um ‘método’ é o espaço estriado da cogitatio universalis, e traça um caminho que deve ser seguido de um ponto a outro. Mas a forma da exterioridade situa o pensamento num espaço liso que ele deve ocupar sem poder medi-lo, e para o qual não há método possível, reprodução concebível, mas somente revezamentos, intermezzi, relances. O pensamento é como o Vampiro, não tem imagem, nem para constituir modelo, nem para fazer cópia. No espaço liso do Zen, a flecha já não vai de um ponto ao outro, mas será recolhida num ponto qualquer, para ser relançada a um ponto qualquer, e tende a permutar com o atirador e o alvo. O problema da máquina de guerra é o dos revezamentos, mesmo com meios parcos, e não o problema arquitetônico do modelo ou cidade modelo. Um povo ambulante de revezadores, em lugar de uma cidade modelo. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.50).

Joga-se o jogo consigo, cria-se notas em pensamento como um sinal de alerta ao corpo-sujeito que, ao buscar definições, deixaria de distinguir-se, de diferenciar, de mudar, de se recompor. Nesse momento a leitura e escrita, escrileitura, funciona como um provocador e apaziguador, paradoxal relação que move o corpo ao mesmo tempo que acalma o espírito. Onde citar é quase como um recitar-se, onde encontra-se no outro quando perde-se enquanto sujeito, para encontrar-se em si:

Ficção de um indivíduo (algum Sr Teste às avessas) que abolisse nele as barreiras, as classes, as exclusões, não por sincretismo, mas por simples remoção desse velho espectro: a contradição lógica; que misturasse todas as linguagens, ainda que fossem consideradas incompatíveis; que suportasse, mudo, todas as acusações de ilogismo, de infidelidade; que permanecesse impassível diante da ironia socrática (levar o outro ao supremo opróbio: contradizer-se) e o terror legal (quantas provas penais baseadas numa psicologida da unidade!). Este homem seria a abjeção da nossa sociedade: os tribunais, a escola, o asilo, a conversação, convertê-lo-iam em um estrangeiro: quem suporta sem nenhuma vergonha a contradição? (BARTHES, 1987, p.7).

Nem cá nem lá, nos dois, em movimento, matéria e onda, definição e fluxo: o Corpo Potencial – essa fantasia – é um corpo enredado com os possíveis num jogo de (ir)restrições: do visível e do dizível, e do invisível no visível e do indizível no dizível, que tensiona por novas possibilidades de se ver, de se falar: de mover! Por mais vida na vida. Nada nega, tudo inclui. Não está fora dos estratos, não nega a força da estratificação, nem a necessidade da territorialização, mas produz linhas de fuga; com rigor, em riso e dança, inventa linhas de vida. Não nega o sujeito, não nega o desejo sempre à espreita, de querer profetizar o pensamento da diferença. Aceita-se nesse jogo, e sobretudo insere-se nesse jogo, para a transmutação necessária ao desvio da Forma, do Modelo, da Verdade. E, para o fim dessa nota, que nunca é mais que um novo começo (sair é entrar!), citamos Nietzsche, citado por Deleuze e Guattari na continuidade do fragmento anterior (1997, p.50):

A natureza envia o filósofo à humanidade como uma flecha; ela não mira, mas confia que a flecha ficará cravada em algum lugar. Ao fazê-lo, ela se engana uma infinidade de vezes e se desaponta. (…) Os artistas e os filósofos são um argumento contra a finalidade da natureza em seus meios, ainda que eles constituam uma excelente prova da sabedoria de seus fins. Eles jamais atingem mais do que uma minoria, quando deveriam atingir todo mundo, e a maneira pela qual essa minoria é atingida não responde à força que colocam os filósofos e os artistas em atirar sua artilharia..

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[1] “E se quisermos, não digo apagar esse temor, mas analisá-lo em suas condições, seu jogo e seus efeitos, é preciso, creio, optar por três decisões às quais nosso pensamento resiste um pouco, hoje em dia, e que correspondem aos três grupos de funções que acabo de evocar: questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante” (FOUCAULT, 2007, p.51).

[2]  VALERY, 1997 apud ADÓ, 2013, p.99.

 

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